terça-feira, 23 de outubro de 2007

Cenário e Figurino - Penélo Bloom



Está aberto o espaço de reflexão sobre o cenário e o figurino do espetáculo Penélope Bloom.
As imagens são obras de artistas surrealistas que estão nos servindo de inspiração para a plástica cênica. Na postagem chamada Penélope Bloom – o Projeto, entre outras coisas, no item 4.2, estão as primeiras idéias sobre a concepção de cenário e figurino.



A carta abaixo foi escrita para o Rudinei, nosso cenógrafo, no dia 6 de outubro de 2007. Transcrevo a carta aqui para que tenhamos um espaço no Blog para debater as idéias sobre cenário e figurino.


Rudi,


Estou aqui com o Bejarano. Meu último dia de Costa Rica. Estamos conversando sobre o cenário do espetáculo. Bom, agora parece que temos que começar a fazer, para estrear em abril. Como o Bejarano só estará aí em março, nós vamos ter que ir construindo antes. Tudo tem que estar pronto até dezembro, na apresentação do trabalho da Júlia, pois em janeiro eu venho para a Costa Rica novamente. 4 pontos que estamos pensando:
1. Ele pede que tu comece, o quanto antes a resolver as estruturas da cama, da escada, da janela, da porta, estudar uma forma que sejam estruturas desmontáveis, e pede um desenho com essa proposta. A escada modelo é a da USINA só que vai ser cortada em dois metros e meio, mais ou menos.
2. Sobre o piano: encontramos aqui uma pianola da universidade que nos emprestaram. Mas parece que não podemos levar. Então estou levando as fotos do instrumento para pesquisarmos se encontramos algo aí. O Leandro disse: “tem um pianista, construtor de instrumentos, etc, chamado Eldad Chapter... Posso conseguir o telefone dele para fazermos a pianola...”
3. E ainda uma idéia da parte mais estética do cenário. Por exemplo, falou agora do corrimão da escada ter um desenho parecido com o da cama.
4. ensaiar comigo e com a Júlia para irmos encontrando os "pequenos momentos mágicos" relacionados com a estética surrealista. (Gibraltar, o filhinho morto, a mãe dela, o Cabaré, o modo que Molly constrói o caminhar de Leopold em Dublin). Talvez uns 5 momentos. Isso teria que ser construído junto com o figurino: pequenos elementos que vão construindo e criando pequenos cenários.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Sobre a Molly Bloom

Ontem eu e o Leandro fomos assistir Piaf. Vocês devem ver!!!!
Lembrei muito da Molly e da Mollinha. Começou em função da época (1918). Nossa Molly, nesta época já era mais velha, mas as duas tem muito em comum: foram criadas pelo pai, vivem o mundo do cabaret e da música, um filho que morre.
Parece que encontrei no filme um pouco da dubiedade da personagem que estamos buscando: uma vida sem grandes reflexões, uma mulher comum, mas uma grande mulher. Elas tem muitas diferenças também: bom, a primeira é que a Molly não chega nem aos pés da Piaf, imagino. Piaf se destruiu, segundo o filme, em função da impossibilidade de viver sem seu grande amor. E o filme evidencia a força com que ela amava. Embora quando criança o amor tenha passado longe dela. Existe uma mulher, uma prostituta que parece construir pela primeira vez uma relação de afeto (lembra o papel da senhora Stanhofe, embora no caso da Piaf seja uma relação muito mais forte que imagino a relação entre a Mollinha e a senhora Stanhofe). Tudo isso me faz pensar e me questionar sobre o modo como a Molly ama. Já falamos muitas vezes sobre isso e ainda não sei. Talvez não tenha que pensar sobre isso, mas ir construindo os momentos com cada ato. “A carne que constantemente afirma”: que não nega, que não tem referências para negar. Para quem amar é dizer sim.
Volto a pensar na nossa “premissa”. Talvez tenha relação com o AMOR. O saber e o não saber amar. Passamos a vida tentando aprender a amar e tentando amar. O que é amar? O que é o amor? É dizer sim? Sims??

Penélope Bloom - o Projeto

PROJETO TÉCNICO










Penélope Bloom
Uma experiência intertranscultural na prática e pesquisa cênica





APRESENTAÇÃO


Este projeto trata da montagem de um espetáculo que parte de uma pesquisa cênica de criação de linguagem teatral atravessada pela intertransculturalidade. Propõe uma experiência de intercâmbio cultural complexa a partir da criação de uma obra artística que não ignora (e evidencia) identidades e diferenças culturais nas escolhas que ocorrem durante o processo.
Penélope Bloom, título da peça que será construída, é a personagem que protagoniza o último capítulo do romance Ulisses, de James Joyce, e o referido espetáculo, que será construído a partir da adaptação do texto citado.
Aqui, esta personagem, a qual se situa entre as mais importantes da literatura ocidental, será composta por duas atrizes, uma brasileira, outra costarriquenha, portanto por dois corpos constituídos de múltiplos significantes culturais.









OBJETIVOS:



2.1 - Produzir um espetáculo teatral a partir da adaptação do capitulo PENELOPE contido no romance ‘Ulisses’ do escritor irlandês James Joyce.

2.2 - Pesquisar aspectos da poetização da ação dramática na composição do personagem e da cena relacionados ao modo de composição na narrativa joyceana.

2.3 - Dar continuidade aos estudos desenvolvidos nos cursos de Mestrado dos artistas envolvidos.

2.4 - Construir uma obra cênica a partir de uma experiência intertranscultural, por via da participação de artistas e técnicos do Brasil e da Costa Rica.

2.5 - Realizar apresentações do espetáculo para o público do Brasil e da Costa Rica e promover o intercâmbio entre países da América Latina.

2.6 - Documentar e divulgar o processo da montagem, promovendo assim o intercâmbio e socialização de experiências autorais contidas nesta encenação, bem como a prática da intertransculturalidade.





3. JUSTIFICATIVA


A escolha por apresentar uma obra de James Joyce na cena é devida ao grande desafio que isto representa para os criadores deste espetáculo. Esta obra os motiva e os impulsiona para a criação, para a continuidade de um trabalho minucioso na busca por configurar e reinventar a linguagem cênica, o que caracteriza o teatro contemporâneo.


3.1 Sobre a obra literária original

3.1.1 O autor: a importância de Joyce para a literatura ocidental

“Joyce avança com expressividade reinventada. Invenções só falam a receptores inventivos” (Donaldo Schüler, tradutor de Finnegans Wake no Brasil)

“James Joyce nasceu em Dublin, Irlanda, em 1882. (...) Dentro de sua produção literária estão os romances ‘O Retrato do Artista Enquanto Jovem’, ‘Dublineses’, ‘Ulisses’ e ‘Finnegans Wake’. (...) O escritor tornou-se célebre por suas experimentações com a linguagem e por suas inovações estilísticas, que incluem o uso extenso do monólogo interior, do fluxo de consciência e de uma complexa rede de referências simbólicas emprestadas à mitologia, à história e à literatura, além de um vocabulário peculiar feito de palavras inventadas, trocadilhos e alusões” (PINHEIRO, p. IV)[1]. Joyce influenciou grandemente a literatura ocidental, bem como a arte moderna.
Joyce não é essencialmente um dramaturgo, embora tenha escrito uma peça teatral, chamada “Exilius”, e um texto dramatizado contido no capítulo 2 do romance “Ulisses”. Porém não são seus textos teatrais os objetos deste projeto, mas sim o último capítulo de “Ulisses”.
A revolução formal e estilística apresentada nesta obra (composta entre 1914 e 1921) continua sendo um desafio para o público contemporâneo, na mesma medida que é quase um convite para encenadores e atores. ‘É uma paródia de “A Odisséia” de Homero (...), uma versão irônica do modelo inicial (...) um jogo de convenções múltiplas, uma prolongada repetição com diferença crítica’ (PINHEIRO, p. X), que ressalta a diferença com o original, sem desmerecê-lo. Em “Ulisses”, Joyce combina o virtuosismo técnico da paródia com o tratamento psicológico dado aos seus personagens.
Para justificar a sua escolha pela montagem e tradução à cena (transcriação) deste texto, a equipe de criação do espetáculo faz suas as palavras de Bernardina Pinheiro, tradutora da obra no Brasil, quando aponta os motivos de sua empreitada:
“(...) o meu desejo de, através de uma linguagem coloquial semelhante à de Joyce, permitir que o maior número possível de leitores usufruísse, como eu usufruíra, de suas criações narrativas inovadoras, através de sua diversidade de estilos, sua musicalidade, sua riqueza vocabular e seu uso do monólogo interior em sua acepção mais completa. Eu desejaria, sobretudo, dar-lhes a oportunidade de se divertirem com a leitura deste livro invulgar como eu me divertia ao lê-lo e traduzi-lo” (PINHEIRO, p. XIV).

Então, pretende-se, através da exploração dos elementos da composição cênica, com evidência para a pesquisa corporal, ligada à análise e apropriação reconfiguradora do texto, aproximar Joyce e sua complexidade estilística do público contemporâneo.



3.1.2 “Penélope”: um retrato extremamente íntimo da mulher moderna, vejam só, escrito por um homem.

Este projeto escolhe, então, adaptar e encenar o último capítulo de “Ulisses”, denominado ‘Penélope’, pois também encontra ali um material riquíssimo para a construção de um monólogo de uma personagem de grande complexidade (a ser realizado por duas atrizes, conforme será detalhado adiante).
“Vou dar a última palavra a Molly Bloom – disse Joyce – o último episódio, Penélope, estará escrito com seus pensamentos e seu corpo”. Molly Bloom é, sem duvidas, um dos grandes personagens da literatura, comparada às mulheres do teatro de O’neil, Tenessee Williams, Ibsen, Checov e Albee.
Num extenso monólogo interior, no decorrer de una noite de insônia, a mulher de Leopold Bloom, o protagonista de “Ulisses”, mãe de Milly, deixa fluir livremente seus pensamentos mais íntimos. Assim como a Penélope mítica, que de manhã, aos olhos de todos, tecia sua colcha e de noite a desmanchava, Molly Bloom “destece” sua vida e sua história durante esta noite de espera, num discurso ininterrupto — que Joyce transcreve, sem nenhuma pontuação, em oito grandes parágrafos ao longo de sessenta páginas. Marion (Molly) Bloom revisa sua vida, se recria em suas lembranças recentes e remotas, reflete visceralmente sobre os mais diversos temas, formula seus desejos, esperanças e projetos, expressa seus sentimentos e opiniões. Este capítulo é caracterizado pelo crítico W. George Tildall como “(...) um ‘divertimento-sério’ sem travas dos pudores e dos hábitos mentais da classe média (...), [onde] o indecoroso, o vulgar e o trivial se revelam o mais elevado”.
As operações microscópicas que se dão na mente deste personagem feminino constroem o fluxo de consciência, esse monólogo interior, que poucos autores mostram-se capazes de levar com sucesso a suas últimas conseqüências. A visão penetrante da natureza feminina, a densidade da vida mental desta mulher de classe média irlandesa do princípio do século XX, expressa-se com frieza e ironia. A aproximação do penetrante com o divertido, nas facetas mais ocultas da pianista do café ‘Palace’ fazem desta personagem dublinense um modelo de universalidade.
Tudo se passa na noite de 16 de junho de 1904, em um dormitório de ‘penumbra amarelada’ situado na residência dos Bloom, da rua Eccles St. Número 7, Dublim, Irlanda, quando Molly Bloom, recorre aos subterfúgios de sua vida enquanto espera a volta de seu marido Leopold Paula Bloom para casa.
Através deste fluxo de consciência, nós assistimos a uma sucessão de pensamentos e ações ‘indiferentes à moral’. Molly é um ser elementar, de natureza terrena e de uma vitalidade obscena. É Molly quem espera. Entanto essa espera consome-se ao ritmo que marca as horas e a agonia da lâmpada de óleo. ‘Há pecados e más recordações – dizia Joyce – ocultos pelo homem nos espaços mais ocultos do coração, mas que ali ficam, a espera... No entanto, uma palavra casual poderá evocá-los de repente nas circunstancias mais diversas, numa visão ou num sonho...’
“Em uma carta (...), Joyce define seu personagem feminino Molly Bloom como uma mulher ‘perfeitamente sã de espírito, totalmente amoral, fertilizável, inconfiável, cativante, perspicaz, limitada, prudente, indiferente’, [e ainda diz], ‘eu sou a carne que constantemente afirma’. Ela realmente diz sim à vida, no sentido mais amplo da palavra. (...)”. (trecho do texto ‘Molly Bloom: não o mito, mas a mulher’, de Bernardina da Silveira Pinheiro, em anexo)

Molly é seu corpo, seu corpo é seu território de vida, de percepção e expressão. Seu corpo é “carne” que age sem mediações mentais, como algo brutal, extremamente vivo. Seu corpo também é espaço de contradição, pois se faz objeto, mas deseja não ser. No corpo de Marion Tweedy – a de cabelos castanhos avermelhados – não só transitam imagens masculinas, pretendentes de uma Penélope dublinesa, mas também imagens das pequenas tragédias da vida, das inúmeras despedidas e de um futuro que não parece promissor. O alvorecer no mês de junho chega cedo em Dublin, mas não parece fazê-lo na vida de Molly. Um cataclisma se precipita... essa mulher nascida em Gibraltar, esta noite espera o retorno de seu marido de uma longa peregrinação, como o Ulisses mítico.
Neste projeto, a criação desta personagem é entendida como parte do processo cognitivo das atrizes, numa idéia de atriz-criadora, é entendida como parte da construção de conhecimento inerente à criação artística, na qual irá rever suas técnicas, sua profissão, suas buscas, sua vida.
“Em tempos em que se fala de morte do autor e do original, a transcriação não ignora tais noções. O artista que transcria vai de encontro ao autor e ao original talvez como um modo de encontrar seu lugar no fluxo da existência, para não cair no vazio do corpo pós-moderno super excitado que não elabora, que não executa, que não “processa”. Precisa de um “reset”. Para que uma dada obra original faça parte dele, faça parte do seu corpo, precisa transformá-la em corpo. Então, original é entendido como a forma que se dá a perceber enquanto configuração de relações singulares na materialidade em que foi imaginada, que apresenta estruturas de pensamento e possibilidades de devaneio para quem a percebe, que apresenta algo que transcende e que dá sentido para a vida.” (dissertação de mestrado de Maria Falkembach, atriz do presente projeto)

Assim, dentro do processo íntimo de recriação desta personagem no corpo das atrizes, busca-se, com este monólogo, promover uma extrema intimidade e cumplicidade com o público, o qual guardará os segredos dessa Molly, que fala, conta e expressa coisas que nunca diria para ninguém.








3.2 Sobre a pesquisa na busca da poetização da ação dramática

Para criar a cena numa estética congruente com a estética de Joyce, o processo de montagem deste espetáculo nos provoca a realizar uma pesquisa sobre a poetização da ação dramática a partir de dois focos, os quais identificamos na obra joyceana: 1. o naturalismo do movimento e do gesto, bem como do espaço que o autor descreve; 2. a dês-construção do discurso e, assim, a dês-construção deste gesto naturalista, em vista da fragmentação do universo emocional e da não linearidade do tempo e do espaço em que se constitui a personagem.
As dissertações de Mestrado de Luiz Gerardo Bejarano e Maria Falkembach, são dois insumos teóricos e técnicos que colaboram com o processo de pesquisa prática. A primeira apresenta as ações-físicas como instrumento de análise do texto, e a dês-construção da mesma como elemento de fragmentação do personagem. A segunda apresenta o conceito de dramaturgia do corpo e a idéia de transcriação[2] como a reinvenção de um texto literário a partir da materialidade do corpo que propõe a apropriação e reinvenção da obra original. Estas duas bases teóricas se integram de modo dialético no processo de encenação do texto de Joyce.
Não cabe aqui omitir a relevância desta pesquisa, na prática da criação do espetáculo, pois ela constitui a busca da construção de conhecimento e da reinvenção de linguagem que abarquem a compreensão do mundo contemporâneo. A transcriação, procedimento que se propõe neste projeto, promove no artista o vazio que impulsiona a reinvenção da linguagem, cria espaços de devaneio quando não há tradução possível. Provoca o desequilíbrio e a necessidade inevitável de inventar novas possibilidades de dramaturgia, estimula o risco e a superação na ampliação da linguagem.
Além disso, a importância da pesquisa está relacionada com o “aprofundamento” de relações e da comunicação. O corpo, hoje, enquanto processo de relação e troca de informações consigo, com o outro e com o meio, é super excitado. Para não ser apenas uma imagem banalizada e estabelecer a troca esse corpo mídia de si mesmo não pode ser separado do auto-conhecimento. Se a tendência da contemporaneidade é a superficialidade das relações, a criação da poesia é uma possibilidade de construção de relações não superficiais, relações que apresentem vários níveis de significação e de trocas entre seres humanos.
Então, a dramaturgia do corpo, configurada pelas atrizes na composição das ações dramáticas, é entendida enquanto criação da poesia, enquanto experiência que sai da banalidade e da relação mercadológica que constitui hoje o fluxo da vida.


3.3 A possibilidade de dar continuidade e dar corpo à pesquisa realizada no curso de mestrado

Desde a criação de “Adélias, Marias, Franciscas...”, espetáculo fruto do seu projeto de graduação, que Maria Falkembach persegue a concretização no corpo de dois conceitos, a fim de buscar clareza, precisão e acuidade na construção de signos estéticos pelo corpo cênico: 1. dramaturgia do corpo; 2. transcriação da linguagem literária para a linguagem cênica construída na materialidade do corpo.
Neste primeiro espetáculo, a fonte foi Adélia Prado, sua poesia e sua prosa. A atriz criadora construiu a dramaturgia do espetáculo com base em ações dramáticas traduzidas do texto de Adélia, buscando a tradução tanto do conteúdo como da forma (congruência estética). O segundo espetáculo nesta linha criado foi o “Grávida”, este um espetáculo de dança que buscou traduzir para o corpo, desta vez, um texto oral, fruto de entrevistas com gestantes (ver programa do espetáculo em anexo).
Assim, em seu mestrado, a atriz e bailarina Maria Falkembach, buscou sintetizar estas experiências e realizou uma pesquisa teórico-prática sobre a transcriação da obra da modernista Gertrude Stein (Dramaturgia do corpo e reinvenção de linguagem: transcriação de retratos literários de Gertrude Stein na composição do corpo cênico). Foi neste trabalho que pôde aprofundar e teorizar os conceitos anteriormente trabalhados de modo empírico. Além dos conceitos, pôde desenvolver uma idéia de treinamento e de princípios fundamentais na configuração do corpo cênico e na criação da ação dramática na escritura da dramaturgia do corpo.
Stein, escritora americana que estudou medicina com William James, o criador do termo “fluxo de consciência” e desenvolveu sua literatura na busca por representar “o que as pessoas são”, também teorizou sobre sua composição, estimulou inúmeros artistas modernistas (principalmente os cubistas) e influenciou os jovens escritores, entre eles, Joyce.
Então, o estudo aprofundado sobre a obra de Stein e seu modo de composição, realizado anteriormente, torna-se aqui fundamental para o processo de transcriação da obra de Joyce. Assim, a criação do espetáculo Penélope é evidentemente uma continuidade deste projeto de pesquisa e de criação da atriz.


3.4 Sobre a Intertransculturalidade

Intervenção do Secretário Executivo do Ministério da Cultura do Brasil, D. Juca Ferreira, na Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais:
Paris, 18 de junho de 2007.
Hoy vivimos el momento histórico de materialización del deseo de compartir nuestros patrimonios y culturas en forma justa. (...) Un ciclo de desarrollo sostenible y duradero está relacionado a la cultura, un derecho de todos los ciudadanos. Para que este desarrollo ocurra en términos actuales, es indispensable que se cuente con un ambiente internacional de cooperación que les proporcione a los individuos, a las comunidades y a las sociedades el ejercicio de sus derechos culturales. Nuestros territorios preservan sus identidades culturales, pero al mismo tiempo nuestras singularidades simbólicas y nuestras tradiciones son beneficiadas por las riquezas de otras formas y modos de ser que nos atraviesan y nos dejan más completos en nuestras propias formas de vida. (...) Los brasileños, somos una confluencia de tradiciones diversas, todas ellas vivas entre nosotros y que componen nuestro imaginario y nuestro modo de vivir. Justamente por esta diversidad es que podemos diferenciarnos y autovalorizarnos en el mundo globalizado. Hoy todas nuestras sociedades viven esta confluencia, una forma de hacernos más contemporáneos y mantener nuestras buenas raíces con el pasado. (...) Hoy miramos la Cultura como fuerza creativa e innovadora para nuestra relación con otros pueblos del mundo. (…) La cooperación entre hemisferios Norte y Sur es un desafío de emergencia para que no se amplíe la distancia entre los incluidos y los excluidos, tanto dentro como fuera de nuestras fronteras. El compartir debe convertirse en una responsabilidad asumida por los gobiernos, las sociedades, los individuos y las instituciones. El momento es extremadamente favorable para los intercambios, alianzas, coproducciones, programas de cooperación.


O fato de James Joyce introduzir na sua literatura (o romance Finnengam Wake é exemplar) estruturas narrativas em distintos idiomas promoveu a concepção de uma encenação com a participação de duas atrizes na construção do personagem Molly. Uma das atrizes construindo a personagem por via da língua espanhola, a outra por via da língua portuguesa. Isto se mostrou instigante e coerente com a obra do autor, visto que implica na construção de um tecido complexo na encenação, escrito a partir de dois idiomas, o que contribui na diversificação dos planos narrativos do personagem e, por conseqüência, na criação da forma estilística.
A partir disto, nos primeiros encontros entre os artistas de países diferentes, se percebeu que não tratava-se apenas de uma escrita com dois idiomas, mas estava-se diante de um projeto “entre culturas”. Ficou impossível negligenciar a magnitude desta proposta que implicava em implementar uma prática de pesquisa e produção cênica dentro de um processo dialético que incorporaria experiências estéticas e culturas teatrais de dois paises de América Latina. Então, toda a pesquisa e toda a criação da dramaturgia do corpo e da plástica cênica estão atravessadas por este processo.
Assim, o projeto cênico “Penélope Bloom” tem sido caracterizado como um projeto que se inscreve na linha da intertransculturalidade[3], conceito este retirado da teorização de práticas pedagógicas, mas que se pretende, aqui, expandir ao campo das artes cênicas.
Deste modo, os artistas envolvidos na pesquisa e na montagem de “Penélope” reconhecem como valiosos os conceitos teóricos que se integram ao pensamento e à ação intertranscultural. Acredita-se que os referidos conceitos, que são inerentes à intertransculturalidade como prática pedagógica, podem se integrar na pesquisa e produção de obras cênicas, evidenciando que as artes cênicas são espaços privilegiados para “pensar, entender a complexidade humana numa perspectiva antropológica que integre o único e o múltiplo”. (Vieira, 1999, 157-7).
Este projeto reúne artistas que se congregam para construir uma obra, o que implica em construir numa mesma linguagem artística. Isto requer o intercambio de suas experiências profissionais, suas técnicas, suas práticas, as quais estão recheadas dos valores, do imaginário e de toda a dimensão simbólica que constitui sua cultura. Acontece sempre, mesmo que de modo subliminar, um diálogo entre os elementos sócio-culturais, na constatação de identificação e diferenciação nas estruturas de relação social ou de interpretação que caracterizam culturas diferentes.
Neste processo, se reconhecem potencialidades e valores coincidentes e diferenciais, as particularidades de suas práticas artístico-culturais tanto quanto sua universalidade. Assim, as atividades deste projeto tendem a se realizar num diálogo horizontal e plural no espaço e tempo da prática cênica, que facilita o encontro dessas pessoas e suas culturas e propicia a integração dessas experiências diversas, relacionado-as a este e outros contextos culturais e processos artísticos. Cada mínima escolha do processo criativo envolve todo o processo de se fazer entender pelo outro e de buscar entender a outra visão de mundo, que tem tanto diferenciações como identidades.
Na prática da criação cênica se propõem, discutem e reconstroem os modos de pensar a profissão, as técnicas artísticas, e as modalidades do conhecimento em torno destas técnicas e metodologias. Através do diálogo teórico-prático se mudam, produzem e ampliam estes conhecimentos, legitimando as identidades e o reconhecimento dos participantes.



Portanto, a construção da linguagem e da forma cênica que busca ter congruência com a obra de Joyce, será fruto também da síntese de experiências de vida e de visões de mundo que propõe esta prática intertranscultural.
Além disso, ao longo do processo, a intertransculturalidade tem se mostrado importante para a transcriação deste último capítulo de Ulisses, pois estimula a análise profunda do contexto em que foi escrito, bem como da visão de mundo a partir da qual Joyce criou sua obra. Evidencia a necessidade de reflexão sobre os pontos de identificação e diferenciação entre a cultura Latino Americana e a cultura Européia que constitui a obra de referência, bem como apresenta instrumentos para isto.
Experiências dessa natureza têm sido escassas nas práticas teatrais latino-americanas, principalmente na criação e apresentação de espetáculos. Assim, acredita-se que este projeto tem grande importância, tanto pela ampliação da noção e da prática da intertransculturalidade, quanto pela referência de intercâmbio entre artistas latino-americanos, que pode vir a ser, fortalecendo e reconhecendo a cultura dos países emergentes.












3.5 Documentação do Processo


Desde as primeiras reuniões de formação de equipe de trabalho, em maio de 2007, o processo vem sendo submetido a um registro por escrito, realizado pelo diretor, a atriz brasileira e a assistência de direção.
Estas três visões do processo, que vem sendo descritas individualmente, sob as ópticas de cada uma das três especialidades, tem ao mesmo tempo a influência do todo, a medida que o caráter de troca e análise do próprio trabalho se estabeleceu como uma das diretrizes deste projeto. Além de registro escrito, o projeto também está sendo fotografado e filmado regularmente.
A segunda etapa da documentação consiste na elaboração de relatórios, ainda individuais, contando ainda com a visão da atriz costarriquenha. A partir destes relatórios, que constituem em si mesmos documentos que analisam a evolução das pesquisas na área de atuação e direção, começaremos a cruzar informações para elaborar um novo documento, este pensado a partir do processo de toda a equipe de criação do espetáculo, analisando as formas pelo qual o processo se desenvolveu e atingiu seus objetivos e o que depreendemos desta experiência em prol de nossa pesquisa cênica.
Além da busca por este levantamento metodológico, a documentação do processo visa essencialmente a socialização da nossa experiência enquanto artistas e pesquisadores, de modo contribuir com a construção de conhecimento na área das artes cênicas. Portanto, as mostras de processo para grupos de teatros e profissionais da área, acompanhados sempre de debates é parte essencial deste projeto.
Os apontamentos terão, então, três focos de análise: 1. a intertransculturalidade; 2. a pesquisa sobre a poetização da ação dramática; 3. o quanto o teatro contemporâneo deve às revoluções estilísticas operadas por Joyce, visto que foi um dos grandes promotores de rupturas conceituais e formais na literatura. Apontamentos sobre estas questões serão realizados na documentação do processo, de modo provocar reflexões desta natureza em especialistas e profissionais do teatro, nos seminários e mostras que serão organizados.












MAIS SOBRE A PESQUISA E A CONCEPÇÃO CÊNICA



4.1 A dramaturgia do corpo como resultado de uma pesquisa de linguagem.


Joyce observa o corpo, os objetos, o espaço e suas relações numa perspectiva inédita: através da subjetividade do personagem, por isso tão naturalista e ao mesmo tempo tão subjetivo. Assim, a narrativa corporal é construída através da seleção posturas, comportamentos e condutas habituais da personagem, induzidas pelo texto, estabelecendo uma linha física que mistura o conceito e o conteúdo naturalista com a distorção da memória e da imaginação.
Então, ao mesmo tempo em que as atrizes vão configurando a personagem a partir das ações físicas de C. Stanislavski, vão estruturando estas mesmas ações numa forma que é referente à apreensão de procedimentos de composição de Joyce: o fluxo da consciência, a fragmentação do pensamento, do espaço e do tempo e demais elementos já descritos acima.
No processo, o movimento cotidiano vai recebendo um tratamento, partir da acumulação de experiências e da exploração de qualidades corporais distintas, detonadas pelas ações dramáticas, de modo a alcançar o nível de poesia. Esta escritura poética do corpo irá revelar o universo emocional e subconsciente da personagem, o qual se constrói no limite entre o presente e o passado.
Segundo Rudolf Laban (coreógrafo e pensador do movimento, cuja teoria fundamenta a presente pesquisa sobre dramaturgia do corpo), a experiência da luta do ser humano por seus valores, que é inefável, só poderia ser expressa através da lógica oculta no movimento. Por isso, para ele, o teatro é o lugar a expressividade deste mundo do silêncio e dos valores. E parece que quando Joyce afirma que ‘a palavra de Molly Bloom estará escrita com seus pensamentos e seu corpo’, além de dizer que ela fala com seu corpo, está buscando revelar este mundo do silêncio. Portanto, este caminho também será o desafio das atrizes deste espetáculo: construir no seu corpo o corpo de Molly, revelar as imagens ocultas no texto, as entre-linhas, a partir da apropriação reconfiguradora do texto de Joyce.
Este processo de apropriação, detonado pela exploração física, desencadeia nos artistas um olhar sobre a realidade a partir da “lente” Molly, o qual vai selecionando e somando outros elementos para a criação, tais como experiências pessoais das atrizes, associação de imagens, observação da realidade, referências em outras artes, etc. elementos estes que são incorporados para a construção do universo da personagem. Um exemplo


são algumas pinturas que Di Cavalcanti (artista modernista brasileiro), as quais retratam mulheres da época de Molly, bem como figuras de Cabaret.
O espetáculo também busca compor a complexidade da personagem construindo a mesma com duas atrizes. A proposta é construir dois olhares sobre esta mesma mulher a partir do modo que cada atriz vai tratar os materiais (métodos e referenciais na apropriação do texto e na configuração do seu corpo).
Além disso, a simultaneidade de duas Mollys em cena, permitirá criar sempre dois enfoques para a ação dramática e propor ao espectador uma constante re-leitura das mesmas ações, buscando mais uma aproximação da obra do autor irlandês, visto que o leitor de Joyce acaba sempre fazendo este movimento.
O processo de pesquisa e criação iniciou em maio deste ano e até o momento alguns elementos de transposição já foram identificados, como por exemplo: 1. realização de ações que não se completam, assim como acontece com as frases do texto; 2. fragmentação de ações e elementos da cena; 3. criação de imagens associativas com o corpo e com os objetos – mesmas ações com objetos diferentes; 4. criação de ações e condutas construídas no jogo entre a materialidade do corpo e dos objetos, assim como o texto às vezes é construído no jogo da materialidade das palavras.
Sendo a forma, na arte, inseparável do conteúdo, a escritura corpórea, somada e relacionada aos outros elementos significantes da cena, deve contribuir para a revelação do conteúdo filosófico e de crítica social contido na obra de Joyce.



4.2 A plástica cênica

Os procedimentos do autor, identificados acima, são incorporados nos demais elementos que constituem a cena, os quais configuram as diferentes narrativas presentes em Penélope. Aqui entendemos por plástica cênica a cenografia, espaço, figurino, como também uma plástica da narrativa sonora.
Além disso, como referência para a construção da plástica cênica, a encenação incorpora um estudo de um dos principais movimentos estéticos do inicio do século XX, as chamadas vanguardas, que realizaram, cada uma a seu modo, uma ampla exploração das possibilidades de expressão da matéria, do fluxo de consciência e da associação de imagens. É importante não esquecer que Ulisses, de Joyce, é caracterizado como uma literatura modernista, com características cubistas, impressionistas e surrealistas.
O cenário será composto por 4 elementos essenciais: 2 camas, uma pianola e uma porta. Embora sejam estes elementos concretos e com funções cotidianas, eles terão um tratamento surrealista, com base em obras de pintoras que participaram do movimento surrealista.


Num primeiro momento a concepção da cena previa um figurino realista, porém agora, depois dos primeiros trabalhos de poetização do movimento e dos achados no tratamento do cenário, os figurinistas têm a tarefa de pesquisar e desenvolver um figurino que contribua com as idéias de fragmentação e fluidez do pensamento.
Espera-se uma interação entre figurino, cenário e acessórios: como se um “escorresse” do outro, assim como um pensamento “escorre” do outro; ou como se um remetesse ao outro em infinitas associações, assim como as idéias e universo psicológico são detonados por associações.
Será utilizado o mínimo possível de acessórios, de modo garantir um extremo significado para cada elemento da cena. Até o momento os únicos elementos existentes são: um pinico, um jogo de cartas de Tarot, uma lamparina, envelopes e uma lata de biscoito.
Tanto cenário, figurino, como acessórios, são elementos importantes para a construção das ações físicas e da conduta da personagem. A partir do modo do corpo interagir com estes objetos é possível criar diferentes tempos e espaços. Uma cama pode tornar-se o porto de Gibraltar, a relação com o sapato pode ser a expressão da relação com o amante e a presentificação do mesmo. O pinico pode transformar-se em um chapéu de dançarinas de Cabaret, evidenciando as relações de Molly com este mundo e seu comentário irônico sobre o mesmo.
A plástica sonora implica não somente na sonoridade do ambiente real e cotidiano, mas também, e principalmente, na simbolização do universo psíquico caótico e inumano que nosso personagem se desenvolve. A música como discurso estético possui especial importância em nossa montagem. Esta será elaborada na base dos sons populares irlandeses e das construções musicais usadas no Teatro de Cabaret, tendo como referência a obra dos compositores John Cage e Arnold Schoenberg. É importante, portanto, submeter este material sonoro ao exercício de desconstrução, de alterações e jogos textuais próprios da estilística joyceana, que a encenação incorpora como um dos conceitos do espetáculo.
Assim, o material falado, além de ação vocal dramática, também será tratado como elemento que se incorpora ao nível sonoro do espetáculo produzido na estilística do autor. Para a criação da música será buscada a musicalidade específica da fala da personagem, bem como o uso de sons cotidianos e alternativos e o uso não convencional de instrumentos, principalmente da pianola que fará parte do cenário, cujo manuseio constitui parte importante do comportamento e da conduta na construção do personagem (uma ex pianista de Cabaret).











4.3 O texto

Dramaturgia, aqui, é compreendida, conforme Patrice Pavis, como “o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador, até o ator, foi levada a fazer”[4], como a rede de significados produzidos na cena por todos os elementos significantes, sendo um destes elementos os fragmentos do texto literário original. À medida que a obra original vai sendo traduzida em corpo e em elementos plásticos o texto literário assume o papel de detonador de reinvenção, perde sua posição de elemento absoluto e vira parte integrante da nova obra.
A partir da trasncriação do texto original por via da operação das ações vai se recosntruindo um texto oral que entra em diálogo com a dramaturgia do corpo e os vazios que devem ser preenchidos pela fala.
Assim, a tradução e a adaptação do texto original está gerando uma nova versão escrita, elaborada através de uma profunda pesquisa teórica e a partir das descobertas do processo da prática de criação cênica.
[1] Introdução à tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, para ULISSES, de James Joyce, em: JAMES, J. Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
[2] Termo criado por Haroldo de Campos para a tradução de poesia.
[3] Este conceito é apresentado no livro de Paulo Roberto Padilha. Currículo intertranscultural: novos itinerários para a educação. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2004.

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[4] PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.