domingo, 29 de março de 2009

Diálogos: marcas, dúvidas e urgências do tempo presente

Daggi Dornelles
coreógrafa, bailarina,professora
(Texto produzido no II Diálogos da Dança, promovido pelo SESC-Porto Alegre)
Antes de escrever, fui revisar as palavras de Márcia Strazzacappa, com a simples finalidade de não repetir abordagens; apenas reforçá-las, quando necessário.

Começamos, ambas, com a questão dos diálogos, especificamente, estes "da Dança", promovidos pelo SESC. Penso que a maior força da iniciativa é o fato de que ela se desenvolve sob a tutela de uma instituição que pode propor novos formatos, apostando em modelos de risco, e abrindo o espaço para que os mesmos sejam aprimorados por uma avaliação e reconstrução gradativa, privilegiando a questão da arte e suas possíveis inserções na sociedade contemporânea.

Neste sentido, diria que foi dado o primeiro passo, ainda um pouco acanhado, que merece uma cuidadosa avaliação, para que cresça e supra – a exemplo do que ocorre em São Paulo – ações essenciais para as quais a administração pública ainda não encontrou o espaço devido, inclusive, por falta de "diálogos" efetivos, que promovam um real conhecimento mútuo e o amadurecimento da teia que pode construir o produtivo e, quem sabe, surpreendente link entre as responsabilidades administrativas e o papel da arte no amplo quadro da sociedade e suas culturas.
O programa que me coube avaliar e comentar, além da diversidade de estilos, já presente no primeiro final de semana de apresentações, foi marcado pela grande diferença de formato, proposta e modo de comunicação: na sexta-feira, dia 07, fui até a esquina democrática, observar o resultado do workshop "posso roubar seu Movimento?", conduzido por Maria Falkenbach; no sábado, dia 08, fui ao Teatro do SESC Centro, para assistir “Pátria Minha”, da Cia Art&Manhas, sediada na cidade de Rio Grande, com coreografias de Doris Ramis, Heloisa Bertoli e Vanessa Picaluga.
Tentarei, inicialmente, separar os dois momentos, a exemplo da forma como os vivenciei. Mas, antes, faz-se necessário expor brevemente a ótica sob a qual “espio” as cenas.
Não sou crítico de arte, mas me considero bastante exigente e com senso crítico apurado no que tange aos inúmeros questionamentos que podem permear as ações humanas, incluindo àquelas de arte, e incluindo-me entre os questionáveis. Não tenho vínculos acadêmicos e, nesta condição, afasto-me também dos modelos adotados pelas instituições de ensino, em suas análises de arte e tentativas de classificação. O lugar de onde observo é a condição do artista – pleno de instabilidades e sujeito a constantes intempéries – que, por momentos, se estabiliza e logo sucumbe em incertezas, alegrias e danos, coletados em 30 anos de ininterrupta atividade de produção artística e em peregrinações por lugares e culturas diversas, que me presentearam com a experiência viva da diversidade; esta, atingindo-me em carne, diluindo minha nacionalidade, fazendo de mim um corpo mundano e desprendido que, hoje, observa o quadro do mundo e da nação com uma carga menor de sentimentalismo, ou comprometimento para com estes ou aqueles. Então, é desta geografia talhada em arte, caminhos do mundo e desidentidade, que emana meu ponto de vista sobre ambos os eventos. Tentarei dividi-lo, chamando a atenção para o fato de que a tarefa é árdua e tudo nela é relativo. O que temos são oscilações, produzidas por experiências diversificadas que, ao fluírem em generoso e honesto intercâmbio, nos oferecem algumas chances de real crescimento que, este sim, processado por cada indivíduo, sem receios e despido de ilusões, pode refinar o quadro geral de nossas culturas, de forma que nele caiba a dignidade do fazer de nossas artes. E, aqui, enfim, encontro-me ante um comprometimento de vida, para bem além das culturas e independente das tantas nacionalidades.
No longo trajeto, percorrido de metrô entre São Leopoldo e o centro de Porto Alegre, algumas vezes, assaltava-me a curiosidade com relação ao momento que viria a observar. Eu mesma, com uma ampla vivência em ações de arte para o meio urbano, tinha certo receio de presenciar algo que pudesse significar uma imposição ao ambiente, ao seu rítmo e cenário característicos.

Esperei algum tempo na Esquina Democrática. Tive receio de ter perdido a cena, ou estar enganada sobre o local, até o momento em que uma das pessoas da multidão chamou minha atenção para um gesto diferenciado. Pouco depois, identifiquei Maria Falkenbach e Diana Manenti (do SESC): sim, ali chegavam os corpos a roubar o movimento.

O grupo instalou-se de forma sutil, a despeito do gestual preciso e diferenciado: nada que pudesse agredir, exceto àqueles que já tem a agressão “na veia”, como fato consumado, em relação a tudo o que igual não seja.

Permaneceram, ali, por um tempo bem mais longo do que se esperava, sem produzir desgaste ou sensação de excesso. Para mim, observador, um momento raro de contemplação da cena humana e suas nuances: o moço que “adere” ao movimento e o reproduz por longo tempo; as meninas com riso nervoso de desentendidas a planejar a fuga – indecisa e lenta – para longe “daqueles loucos”; o rapaz que gesticula esclarecimentos para o amigo e que me surpreende, tanto quanto a si mesmo, com um gesto similar ao do grupo. Por instantes, fiquei sem saber quem era quem; sincronicidades, momentos comuns dos corpos, semelhanças que geram enlaces e diluem o território de atuação, num breve instante de comunhão. Um gentil automóvel que desvia sua rota, e um outro, nem tanto, que insiste em atropelar o ato.

Com o correr do tempo, a ação do artista parece desdobrar-se em ilimitada cena comum, onde aquilo que somos, em diversidade de postura e sensibilidade, passa a integrar a performance e entrelaçar as cenas.

Sem qualquer desmerecimento ao palco, precisamos, em via paralela, refletir sobre a pertinência e urgência destas “artes que vão ao mundo” e seus significados em uma sociedade pontuada por preconceitos, bombardeios midiáticos e racismos de toda ordem. Aqui, o simples e delicado “estar no mundo” é já um manifesto pró-diversidade, sensibilidade e desformatação de nossas radicais idéias de arte e comportamento.

No dia seguinte, fui ao teatro, para viver uma experiência completamente diversa.

Desconhecia a Cia. Art&Manhas que, segundo as poucas informações que pude coletar, é o grupo original de uma escola que, atualmente, tenta dar seus primeiros passos como formação independente de bailarinos: uma transição complexa, com todas as dificuldades inerentes ao amadurecimento, fato que fica evidente na apresentação do grupo.

Se, sob um aspecto, é gratificante a qualidade de movimento de grande parte dos integrantes, sob outro, evidencia-se a fragilidade da composição como um todo, no momento em que é proposto um tema, que parece ficar restrito à função de álibi para que o movimento se efetive, e sem abordagens de maior significado, a exemplo do texto – também confuso – incluído no release.

As inúmeras realidades brasileiras, os tantos contrastes do país, ainda que apenas em pontos de contato entre o corpo em movimento e o universo cultural brasileiro, como esclarece a apresentação do trabalho, é tópico de amplitude assustadora. Diante dele, se desejarmos ser conseqüentes, ou abrimos os permeáveis portais da inspiração e ousamos em todos os sentidos, ou buscamos minúcias, num árduo processo de estudo e elaboração. Ali, o movimento parece não ter feito sua escolha, deixando o Brasil e sua memória à cargo da trilha sonora, e ausente nas possibilidades coreográficas ou dramatúrgicas. Devo ter causado desgosto ao dizer que abri as portas da imaginação e permiti que os movimentos seguissem ao som de Bach, New Age, ou silêncio, como forma de por à prova minha impressão de ausência de Brasil no movimento, exceção feita ao breve solo, onde uma bailarina traz à cena pinceladas leves da ginga nacional.

Talvez, tenhamos que retornar ao histórico de transição do grupo, este momento delicado que já mencionei anteriormente, um “turning point” entre a situação anterior de escola e o desejo de profissionalização. É provável que uma análise mais profunda desta situação forneça dados relevantes para o alicerce futuro. As escolas, ou seus grupos representantes – por “n” motivos relacionados à situação geral da dança no país, e que não cabe, aqui, mencionar, ou discutir – vivem o lugar comum de expor seus trabalhos nos inúmeros festivais que se realizam, ao longo do ano, e de Norte a Sul. Não raro, (felizmente, esta realidade dá alguns sinais de desgaste e necessidade de reavaliação) estes encontros estimulam um modelo focalizado em lucros – aqui, simbolizados por troféus, medalhas, classificações diversas e prêmios em dinheiro – que muito mais aborta o criativo e suas possibilidades do que o estimula, como seria de direito e de desejo de uma consequente iniciação nos caminhos da criação artística.

Na arte, como na economia, e em todas as ordens possíveis deste momento do mundo, estamos MARCADOS, irreversivelmente, pelas fartas cicatrizes herdadas de uma cultura que nos diz que é preciso ganhar. Ganhamos o quê? Estamos, mais do que nunca, viciados e trancafiados em modelos insustentáveis e inflexíveis.

A pergunta, feita durante o “diálogo”, a me pedir ajuda para conquistar o público, ecoa e prolifera em dúvidas e mais dúvidas. Não tenho receitas ou soluções. Estamos todos no ápice da incerteza. Não posso compor uma obra que deseje de arte pensando em conquistar público: seria uma traição à arte e ao público. Estas coisas acontecem, e inúmeros sucessos de público acontecem “a posteriori”, antecedidos por rejeições radicais. Creio, sim, que precisamos ter um afeto para com o mundo, paralelo à uma coragem gigantesca de nos expormos ao ridículo, ao fracasso, à resistência e ao risco de criar. Não só a dança, mas todas as coisas por nós feitas, andam com urgência de adeptos da criatividade e do risco, que tanto mais preciosos serão quando seus riscos significarem ganhos amplos, encantos compartilhados, lucros reaproveitáveis na ousadia do sonho de espaços, tempos, e riquezas compartilhadas.

Dialogar é preciso, em corpo inteiro e escancarado à ilimitada diversidade de referências, informações, ignorâncias, carências e mais tanto daquilo que nos constitui como raça tão adepta dos prós e arredia aos contras que sobre o “si mesmo” se abatem. O certo e o errado andam doentes, a auto-estima tem urgências de fazer-se outra estima, onde o outro é foco e pode, subitamente, confundir-se entre ele e eu. Conhecer, dialogar, abrir caminhos de comunicação, investigar sem esperar ganhar e como diria o velho Einstein, imaginar, que a imaginação é mais preciosa que o conhecimento, pois que abre portas e possibilidades.

Em meio às tantas burocracias, velharias cansadas de um sistema pouco criativo e desconfiado, iniciativas como esta, do SESC, merecem ser levadas a sério e à frente, revistas com cuidado e boa vontade, para que tenhamos muitos campos de diálogos possíveis, sonháveis e, naturalmente, realizáveis.

O assunto tornou-se largo, entornou para fora do privilegiado círculo da dança e seus adeptos. Melhor assim, mais chances nos restam de refletirmos sobre as possibilidades de termos nossa arte entre os vitais entornos que, por alguma fresta, venham a arejar os tantos sufocos de um tempo presente, com urgências já quase irremediáveis de algum movimento vital, produzido pela renovação de todo o ar.