sábado, 10 de setembro de 2011

Sobre a Filosofia da Finitude – primeiros escritos

Filosofia da finitude.

Cada vez que leio mais, mais me aproximo de uma possibilidade de narrar o trabalho que venho desenvolvendo. Um trabalho que foi se construindo. Não sei exatamente como começou. Acho que foi do medo de virar professora e nunca mais habitar um espaço cênico. Medo de virar professora e não ter mais de onde tirar o que sei ensinar. Também, coragem de encarar algo que acho que sei fazer e que nunca me arrisquei: coreografar, dirigir. Parece que sei da vida. Parece que sei olhar o mistério. É isso que me interessa, é a narrativa disso que acredito que pode contribuir de algum modo para desendurecer o peito das professoras. Para diminuir os saltos, amaciar as vozes metálicas, marejar os olhos fixos, tremer os ombros crispados, mover as virilhas intactas. Como escrever sobre isso sem cefaléias, tendinites e dores de minha escoliose? Escrever pensando em vocês, meus colegas agora, nesta contingência provocada pela Denise. Posso chamar isso de contingência? Que sorte a minha ter decidido fazer uma disciplina neste momento. Por que justo neste momento? E, a partir deste momento, torna-se irreversível.



Quando escrevi sobre dramaturgia do corpo (minha dissertação), apontei como uma condição fundamental para a configuração desta obra de arte, uma necessidade profunda do ator-dançarino em realizá-la. Essa necessidade que surge da busca pelo sentido da vida, de estar em cena e de criar. Nada se sustenta, o “texto” não se sustenta, se não há necessidade de dizê-lo, se não há sua vida implicada e imbricada em dizê-lo.

Estar em cena, esta ação de atualizar a dramaturgia corporal criada, é muito frágil. É um ato impreciso, que demanda uma técnica imprecisa, pela via negativa (Grotowski construiu em seu Teatro Laboratório uma proposta de técnica pela via negativa).


Minha leitura da Filosofia da Finitude de Mèlich me convoca a propor o estado de presentação do ator-dançarino como uma experiência exemplar da experiência poética da finitude. Vou me empolgando com as aproximações teóricas que começo a fazer, tenho que me cuidar para não virar tudo poesia e ficção da teoria. Mas tenho a experiência do hoje (hoje de manhã estivemos em mais uma escola) que coloca em meu olho, o olho de cada criança e de cada professora, que não me distancia do cheiro de escola, da poeira do chão da sala de aula, do riso constrangido e provocativo dos guris e das gurias.
Estou falando do Tatá Dança Simões, uma obra de dança-teatro que começou com a leitura de alguns textos do Simões Lopes Neto, autor pelotense, que escreveu sobre essa cidade, esse povo, nossos avós (tataravós, talvez). Não são quaisquer textos, são grandes obras, obras primas! Não porque os doutores disseram, mas porque produziram o que produziram em cada um dos alunos (dos cursos de Dança e de Teatro da UFPEL) que fazem parte do grupo, porque permitiram que cada um de nós fizesse o exercício da memória e da esperança. Exercício de reconhecer a herança da tradição e de buscar sentidos para isto. A partir disto, permitir que cada um seja narrador de sua experiência e da experiência do outro, um com o outro.
Volto para a fragilidade deste narrar. O próprio narrar, o estar em cena, é uma atualização (transformada) da memória, da experiência. Como construir a cada apresentação (ou presentação) um espaço e tempo outros que produzem novos sentidos e novas transformações? Se não há a produção deste se refazer de cada um dos atores-dançarinos, a experiência não acontece, a narração se torna informação e o público vai ver movimentos desprovidos de sentido e vida.
A cada dia, antes de começar o espetáculo, dá medo de não acontecer. Tudo conspira pra não acontecer. O cansaço dos atores-dançarinos, o despreparo de algumas professoras, a má vontade de outras, a falta de espaço apropriado, a hora do recreio, a desconfiança, a vontade de não se implicar. De repente, começa e acontece. Acredito que o que produz esse acontecimento é a ética implicada em cada movimento, em cada passo, em cada olhar.


O Tatá Dança Simões é uma experiência de relação entre passado e futuro – relação com mitos, ritos e narrativas. E cada ator-dançarino, em sua presentação, vive a presença inquietante e a expõe. Se expõe.

E o silêncio dos alunos que nos assistem? Torço para que seja da falta da palavra para narrar a experiência. Neste momento fico em dúvida sobre a relevância de fazer uma conversa com esses alunos depois.


Todas as fotos são de Rodrigo Migliorin

"De Adélia cada um tem seu fragmento", por Beatriz Rodrigues.

O espetáculo cênico “Adélias, Marias, Franciscas”, concebido e encenado pela atriz nascida em Ijuí, graduada em Porto Alegre e hoje moradora de Pelotas, Maria Falkembach, esteve em temporada no Teatro do COP, em Pelotas, nos dias 13 e 14 de agosto. Como alguém que tem interesse por esta arte da expressão, e também pela produção desenvolvida na cidade, fui conferir o espetáculo e fiquei muito tocada, em vários momentos.

Este texto é a tentativa de mapear alguns elementos que considerei expressivos, não do lugar de “conhecedora” de teatro ou dança (que não sou), mas pela produção de sensações que, durante aqueles minutos, mantinha vivo o convite: viajar pelas palavras da poetisa Adélia Prado, num movimento em que a travessia do texto se dava pelo corpo da atriz. Com as imagens que aqui apresento, se o espetáculo não poderá regressar, fica a impressão de que o tempo foi pinçado, encontra-se suspenso, e, de um modo irônico, se mantém ainda vivo. O convite, agora, então, é para que também se possa mergulhar na ambiência da cenografia, da luz, do gesto. Que as imagens possam ser ao menos parte da beleza do acontecimento.


Uma concepção plural: poderia assim referir o belíssimo trabalho de Maria Falkembach, que no espetáculo Adélias, Marias, Franciscas, alia literatura, música, teatro e dança. Uma produção-experimentação que vem acompanhando a atriz há mais de dez anos, trazendo tanto o belo como o cruel da vida, na fala das muitas personagens que brotam dos textos e das poesias de Adélia Prado. Personagens que retratam o cotidiano de muitas mulheres, na relação entre o material e o imaterial: o cuidado com a casa, com os filhos, consigo mesma… às reflexões sobre Deus, sobre a finitude do humano… Em meio ao preparo do bolo, palavras como “Inauguro linhagens, fundo reinos – dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô” *.

Se são muitas as vozes habitando as letras de Adélia, Maria Falkembach nos lembra o cotidiano de muitas Marias e Franciscas pelo Brasil – a experiência frente aos problemas da vida do dia a dia, e colocando-os não como problemas menores dentro da discussão sobre o feminino. As dores do mundo são vivenciadas no corpo da atriz, no seu belíssimo trabalho de interpretação.


Mas no cotidiano, não estão impressas apenas dores: as mulheres de Adélia sentem fundo na carne também o que é carne. Nos meandros da mimese, Maria Falkembach nos traz imagens de muita beleza e visceralidade, como no momento em que o corpo e o prazer estão em primeiro plano, produzindo uma das cenas mais sensuais que já vi em teatro, sem trabalhar, no entanto, com a literalidade:

Nas potencialidades do trabalho cênico da atriz, um elemento salta, no convite de conduzir o expectador através de sons e imagens: o gesto. O corpo todo pulsante no momento presente: em cada segundo… O corpo está imerso em uma relação íntima, em que a interpretação se dá na fronteira entre teatro e dança – dançando a beleza de cada instante, mesmo na dor (e existem várias).

Nesta relação entre teatro e dança, a partir do gesto, as expressões se fundem através de um trabalho coreográfico encantador, e este tem como base a trilha sonora composta por nomes como Elomar, Tom Zé, Hermeto Paschoal, além de grupos de cordas e choro, entre outros. Cada personagem com seu tom, nos produzindo diferentes intensidades de sensações.


Agora, falando um pouco do lugar de quem se sente completamente afetada pelas imagens produzidas pela dramaturgia, levanto também aqui a cenografia do espetáculo, simples e relacional, além de portadora de muitas delicadezas – em cada trama composta, como no tapete da vida, trazendo um pouco a lembrança do filme Gabbeh**. Também aponto aqui o trabalho de iluminação do espetáculo, pois mesmo o teatro do COP tendo as suas limitações técnicas (já sabidas, pelo próprio tempo da sua estrutura), a iluminação possibilitou registros fotográficos também muito potentes.

E, no que tange à sua biografia, além de atriz e dançarina, Maria Falkembach é também professora dos cursos de Teatro e Dança da UFPEL, e tem uma discussão muito aprofundada sobre as relações entre estes dois campos, na possibilidade de habitar a sua fronteira. Como docente, coordena o grupo Tatá, que além de ter a proposta de reinvenção da obra de escritores locais no e pelo corpo dos atores-bailarinos – que são seus alunos dos cursos de graduação –, também se propõe a semear a beleza do movimento nas escolas públicas da cidade de Pelotas.

Este primeiro momento, encenando Simões Lopes Neto, poderá ser conferido neste final de semana, também no Teatro do COP (maiores informações através do link: http://www.ecult.com.br/noticias/apresentacao-do-tata-no-teatro-do-cop-com-entrada-a-precos-populares). Fica a dica, então, para que os interessados não apenas compareçam, mas se proponham a dialogar com as produções que nascem no cenário cultural da cidade de Pelotas…


Aos que desejam conhecer mais sobre o processo da atriz, é possível fazê-lo através do site http://dramaturgiadocorpo.blogspot.com/, e aos que tenham se envolvido com as imagens, é possível conhecer outras tantas através do endereço http://www.flickr.com/photos/bigatrice/. Sabendo, é claro, que isto não substitui a expectativa por mais uma temporada (dedos cruzados!), para poder transbordar vossos olhos com luz, cor, belíssimos movimentos e uma intensa interpretação, isso tudo sem contar as sutilezas do texto de Adélia Prado… Em suma: imperdível.

Texto e Fotos: Beatriz Rodrigues
www.flickr.com/photos/bigatrice

* “Com licença poética”, por Adélia Prado. IN: Poesia reunida.
** Obra do iraniano Mohsen Makhmalbaf.

E por falar em mulheres…
Para ler: “Dialogo sobre o corpo”, de Ivete Keil e Márcia Tiburi.
Para ouvir: “As time goes by”, álbum de Billie Holiday.


Originalmente este texto foi publicado em
http://www.ecult.com.br/artes/de-adelia-cada-qual-tem-seu-fragmento-por-beatriz-rodrigues