segunda-feira, 14 de março de 2016

Reflexão sobre o BNCC


Impossível dialogar com o programa montado pra a "consulta pública". Não há reflexão, há apenas um formulário pra marcar ou preencher. Sobre protestos, deixo aqui um pouco de minha reflexão sobre o documento.


Antes de começar, importante frisar que estou no calor do processo pesquisa de meu doutoramento, neste momento em outro país, portanto sem desenvolver nenhum diálogo direto com nenhum grupo. Perdão, portanto, se meus pensamentos estiverem repetindo discussões já postas. Por outro lado, como o tema de minha pesquisa é o ensino de dança nas escolas me sinto na obrigação de contribuir de algum modo com a discussão. Segue, então, minha reflexão sobre o que está sendo encaminhado como Base Nacional Curricular para a Dança.

Perigo primeiro: Do modo que se constitui a proposta de estrutura curricular, esfacelando o conhecimento em diferentes componentes de áreas, a dança não pode ser classificada como subcomponente de uma área. Precisamos garantir o lugar da Dança, Teatro, Música e Artes Visuais como componentes da área de Artes/Linguagem. A questão aqui é garantir que serão os profissionais preparados e qualificados que estarão trabalhando com essas áreas – o professor de dança trabalhando com dança; o professor de teatro com teatro; o professor de música, com música; e o professor de artes visuais com artes visuais. Parece óbvio, mas se nessa estrutura de currículo cada uma dessas áreas se constituir como subcomponente, isso poderá produzir inúmeros equívocos, como por exemplo, um professor de “Artes” trabalhando com todas as áreas; ou um professor de Educação Física assumindo a área de Artes, visto que a dança, com nome de “praticas corporais rítmicas” é um dos subcomponentes da Educação Física.

Segundo perigo: Difícil essa tarefa de pontuar o comum, justamente no momento histórico que estamos conseguindo olhar para as nossas diferenças. O comum, entendo, então, seriam os elementos que nos vinculam a algo maior, a uma humanidade. O conhecimento comum deveria proporcionar um mínimo de igualdade. Assim, me agrego à abordagem de Vera Candau (2006), que insiste na articulação entre igualdade e diferença.
Então: como articular os saberes da dança numa proposta de currículo escolar que articule igualdade e diferença?

A convocação pública é para sugestões de objetivos de aprendizagem. Entendo, deste modo, que não se trata de definir conteúdos específicos, mas de definir competências e habilidades. Aí, o terceiro perigo. Em tempos de trabalho imaterial, da economia criativa, se olharmos de forma rasa, os objetivos das artes se parecem muito com os objetivos das empresas e do business que têm financiado as reformas educacionais pelo mundo.  Ou melhor: os objetivos dessas reformas, para formação dos novos trabalhadores e trabalhadoras, muito se parecem com as competências e habilidades que estão em jogo na prática artística. “Só que não”, existem sutis diferenças, que são diferenças colossais. Nesse sentido, é interessante o artigo de Susan Stinson (2015), no qual ela propõem um quadro comparativo entre os objetivos de sua abordagem no ensino de dança e os objetivos para a educação apontados pelo grupo P21 (Partnership for 21st Century Skills), um grupo de entidades educacionais (como o Departamento de Educação dos Estados Unidos) e um grande número de empresas (AOL, Apple Computer, Cisco System, Dell Computer, Microsoft and SAP) (STINSON, 2015, p. 111). Segundo Stinson, a proposta do P21 traz “o valor não declarado, mas implícito, da produção eficiente e eficaz que se espera no mundo financeiro e empresarial” (Stinson, 2015, p. 111).

Na entrevista que Carla Andrea Silva Lima (especialista da dança na elaboração do documento preliminar da BNC) concede ao Alexandre Molina, na revista idança.net, ela confirma que a abordagem do mercado está permeando a construção do BNC: “O risco que vejo nesse viés é o de construirmos um currículo baseado na demanda do que se acredita que o mercado necessite e não na inventividade humana e de com isso, acabarmos por tomarmos a educação como espaço de provimento de mão de obra para esse” (MOLINA, 2016). A entrevista mostra também a reflexão da especialista após inúmeras críticas ao documento preliminar da BNC e o debate instalado. Apresenta, assim, a complexidade do campo de conhecimento da dança que não se reverteu na redação dos objetivos de aprendizagem.

Voltando à reflexão que me trouxe o artigo da Stinson, cito um exemplo: um dos objetivos da proposta do P21 é “pensamento crítico e resolução de problemas”. Mas de qual “pensamento crítico” o P21 está falando? Entendo que não é o mesmo “pensamento crítico” que funda um dos importantes eixos das abordagens das práticas de dança na educação no Brasil – pensamento que se constitui na conquista por decifrar os códigos culturais (as linguagens), as relações de poder, entender as injustiças e se engajar na busca de justiça. Não: o “pensamento crítico” do P21 se refere à análise de várias perspectivas para entender a complexidade dos eventos e encontrar a melhor solução buscando a eficiência e produtividade... para o mercado.

Stinson discorre sobre outros dos objetivos do P21, entre eles “flexibilidade e adaptabilidade”. Segundo ela, “essas habilidades são inerentes à dança” (Stinson, 2015, p.111). Porém não somos ingênuos e entendemos que a flexibilidade e adaptabilidade do P21 está relacionada à habilidade de resiliência do futuro empregado das grandes corporações, que necessitarão suportar grandes pressões no ambiente de trabalho e, nesse clima de tensão, superar-se e encontrar as soluções criativas que o mercado necessita.
Então, o terceiro perigo está relacionado com a possibilidade da dança adotar os objetivos de eficiência e produtividade do mercado, do sucesso, da competição e da superação que leva alguns poucos a serem “os vencedores” – e que, portanto, produz inúmeros “perdedores”.

Nesse sentido, existem diferenças de perspectiva marcantes: nas práticas de educação em dança há relevância nos sentidos construídos pela consciência somática e pela presença cênica; há evidência da imersão corporal na cultura; há ênfase na criação criativa sem resultado, que implica risco e transformação; há busca pela experiência estética. Tais perspectivas podem nos acordar constantemente para as armadilhas criadas pelo mundo do “sucesso”. E vejo que algumas dessa perspectiva não estão devidamente ressaltada nos objetivos do BNC dança.

Pensando nestes perigos, trago contribuições para se pensar em propostas de objetivos de aprendizagem a serem acrescentados à versão preliminar da BNC. Aqui preciso de ajuda para complementar lacunas e tratar melhor o texto. Alguns dos objetivos, os quais entendo que são a base da aprendizagem de dança, se repetem nas diferentes etapas de escolaridade. Entendo que os objetivos Comuns são amplos e que cada professor e professora (graduados em cursos de licenciatura em dança) saberão como melhor compor suas práticas com vista a esses objetivos, por via do trabalho com as “estruturas da linguagem da dança” (MARQUES, 2010), com práticas específicas, corpos específicos, contextos específicos.

ANOS INICIAIS
- Explorar e ampliar as possibilidades de seu corpo em movimento (considerando relações espaciais e diferentes dinâmicas), descobrindo e desenvolvendo, na relação com os outros corpos, singularidades e universalidade.
- Participar de experiências corporais construídas pela perspectiva das práticas de educação somática.
- Trabalhar o engajamento corporal por meio de práticas somáticas e de presença cênica. Desenvolver o sentido cinestésico e a percepção dos corpos na presença de outros corpos, inclusive na quietude. Ampliar a possibilidade de perceber e dialogar com o outro por via do movimento do corpo engajado.
- Construir reflexão sobre as experiências corporais pessoais e coletivas desenvolvidas em aula.
- A partir da prática de dança, conhecer, identificar e refletir sobre as diferenças nos movimentos e nos corpos, como também sobre as diferenças de intenção de movimento.
- Explorar e ampliar a escuta de música por via da relação com o movimento.
- Explorar propostas de transformação do espaço pessoal pelo movimento dançado.
- Explorar propostas de transformação de diferentes espaços pelo movimento dançado.
- Conhecer, apreciar e pesquisar diferentes danças em seus contextos.
- Conhecer, pesquisar e experimentar diferentes processos de criação coreográfica: por imitação, criação coletiva, tarefas, improvisação, tema, literatura, outras obras artísticas, entre outras possibilidades.

ANOS FINAIS
- Explorar e ampliar as possibilidades de seu corpo em movimento (considerando relações espaciais e diferentes dinâmicas), descobrindo e desenvolvendo, na relação com os outros corpos, singularidades e universalidade.
- Participar de experiências corporais construídas pela perspectiva das práticas de educação somática.
- Trabalhar o engajamento corporal por meio de práticas somáticas e de presença cênica. Desenvolver o sentido cinestésico e a percepção dos corpos na presença de outros corpos, inclusive na quietude. Ampliar a possibilidade de perceber e dialogar com o outro por via do movimento do corpo engajado.
- Construir reflexão sobre as experiências corporais pessoais e coletivas desenvolvidas em aula.
- Desenvolver a disponibilidade para arriscar-se e a sensibilidade para construir ambientes coletivos que permitem o risco, a invenção – espaços de respeito e de desconstrução de preconceitos.
- Pensar os corpos (principalmente o corpo pré-adolescente), suas diferenças, suas relações, a partir de práticas de dança.
- Conhecer e compreender criticamente o contexto de produção de diferentes danças, de diferentes épocas e lugares, principalmente no Brasil.
- Conhecer, pesquisar e experimentar diferentes processos de criação coreográfica: por imitação, criação coletiva, tarefas, improvisação, tema, literatura, outras obras artísticas, entre outras possibilidades.
Os dois últimos objetivos, tomo emprestado da lista apresentada por Susan Stinson em sua proposta para o ensino de dança (Stinson, 2015, p. 112-113):
- Desenvolver a capacidade e disposição para experiências de ambiguidade e estranheza.
- Reconhecer a conexão do corpo e do movimento com o mundo físico e as ideias.

1º, 2º, E 3º ANOS
- Explorar e ampliar as possibilidades de seu corpo em movimento (considerando relações espaciais e diferentes dinâmicas), descobrindo e desenvolvendo, na relação com os outros corpos, singularidades e universalidade.
- Participar de experiências corporais construídas pela perspectiva das práticas de educação somática.
- Trabalhar o engajamento corporal por meio de práticas somáticas e de presença cênica. Desenvolver o sentido cinestésico e a percepção dos corpos na presença de outros corpos, inclusive na quietude. Ampliar a possibilidade de perceber e dialogar com o outro por via do movimento do corpo engajado.
- Construir reflexão sobre as experiências corporais pessoais e coletivas desenvolvidas em aula.
- Ampliar a disponibilidade para arriscar-se e a sensibilidade para construir ambientes coletivos que permitem o risco, a invenção – espaços de respeito e de desconstrução de preconceitos.
- Pensar os corpos (principalmente o corpo adolescente), suas diferenças, suas relações, a partir de práticas de dança.
- Refletir sobre questões filosóficas, éticas, sociais e políticas que emergem da prática de dança.
- Conhecer e compreender criticamente o contexto de produção de diferentes danças, de diferentes épocas e lugares, principalmente no Brasil.
- Produzir propostas coreográficas e experimentar a criação de coreografias.
- Desenvolver a capacidade e disposição para experiências de ambiguidade e estranheza.
- Reconhecer a conexão do corpo e do movimento com o mundo físico e as ideias.
- Reconhecer as possibilidades expressivas da dança na relação com a contemporaneidade (ou contemporaneidades - com ênfase nas questões presentes em suas vidas)

Referências citadas:
CANDAU, Vera Maria (Org). Educação Intercultural e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
MARQUES, Isabel A. Linguagem da Dança: arte e ensino. São Paulo: Digitexto, 2010.
MOLINA, Alexandre. Base Nacional Comum Curricular: por que isso interessa à dança? Idança.net, 2016. Disponível em: http://idanca.net/base-nacional-curricular-comum/.
STINSON, Susan W. Rethinking Standars and assessment in dance education. In: NIELSEN, Charlotte S.; BURRIDGE, Stephanie (Ed.). Dance Education Around the World: Perspectives on dance, young people and change. London and New York: Routledge, 2015, p. 107-116.


Link enviado pela Cassia Navas, que realizou um dos pareceres críticos: "BNCC, parecer crítico sobre/para arte/danca. Consultem! Leiam, urgente debate da dança, para a dança, da educação básica, para a educação básica":

http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/relatorios-analiticos