quinta-feira, 29 de maio de 2008

Memorial

O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos, é um devaneio cósmico, é um fenômeno de solidão libertadora, que liga o sonhador ao seu mundo (BACHELARD, 2001, p. 14).

Sou Maria. Nome que meus pais me deram. Já muito me perguntaram: só Maria? Sim, a resposta de sempre. Mas logo vem o sobrenome complicado, que sempre tenho que soletrar: F,A,L; K,E; M (de Maria); B,A,C,H (como o compositor, Bach). O Fonseca quase sempre suprimo, porque: Maria Fonseca tem uma perna grossa e outra seca!

Aviso aos navegantes
Sempre em minha vida busquei o prazer nas tarefas, que imediatamente deixavam de ser tarefas, para tornarem-se criação e crescimento. É isto o que está acontecendo neste exato momento: o desafio desse memorial, que vem numa hora atribulada, nas vésperas de uma estréia (no momento a mais importante da minha vida), como mais uma das missões burocráticas para a inscrição em um concurso para dar aulas da Universidade, está tornando-se uma volta ao passado e, espaço de devaneio. Perdoem-me a poesia que possa fazer de mim mesma, mas hoje, principalmente hoje, no meio deste processo de transformar corpo em poesia (corpo que sou eu, no espaço cênico, mas também aqui), isso para mim é inevitável. É esta poesia que me dá prazer e extrema vontade de estar aqui me recriando.
Livro importante pra mim (vários foram importantes: toda a coleção do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de capa verde, da minha mãe, que ela lia pra mim e hoje lê pra minha sobrinha; O Menino Maluquinho, que meu pai me deu e eu levei muito tempo pra ler – estava sendo alfabetizada e o livro era muito grande. Não sigo a lista, é considerável) foi A Poética do Devaneio, de Gaston Bachelar. Segundo o escritor, existem devaneios tão profundos que ajudam o indivíduo a desembaraçar-se da sua história (que é contada pelos outros) e se re-encontrar com os seres que foi na infância. “[...] Fomos muitos na vida ensaiada, na nossa vida primitiva. Somente pela narração dos outros é que conhecemos nossa unidade. No fio de nossa história, contada pelos outros, acabamos, ano após ano, por parecer-nos com nós mesmos.” (Bachelard, 2001, p. 93). Aqui, eu outra, me conto, me ensaio e me apresento. Então, perdão pelos devaneios. E agora conto porquê o livro foi/é importante. Um dia, dançando, treinando, não..., improvisando ações para um espetáculo no limite entre a dança e o teatro, descobri que meu devaneio poético era corporal. Bachelard escreve que “o devaneio que o escritor experimenta na vida atual tem todas as oscilações dos devaneios de infância entre o real e o irreal, entre a vida real e a vida imaginária” (Ibd., p. 117-118). Minhas brincadeiras de criança sempre foram muito espaciais e corporais. O prazer extremo era sentido depois de um dia brincando, de chegar em casa imunda e muito cansada. Corpo cansado, suado e sujo sempre foi pra mim sinônimo de felicidade. É possível imaginar, então, um pouco de mim: um corpo que vibra quando transforma espaço e tempo em poesia e quando se reinventa. Isso tudo transborda um pouco pra minha escrita. Isso acredito e defendo: a continuidade entre espaço, corpo, linguagem, pensamento, emoção. Então, perdão pela linguagem, que, até aqui, nesse memorial, quer se inventar.
Sigo.


Os espaços para o corpo
Nasci em Ijuí, noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Nasci lá, em 1972, porque foi lá que meus pais encontraram um lugar pra trabalhar (uma faculdade, hoje UNIJUÌ) longe dos porões da ditadura. Minha casa era imensa, tinha um pátio mais imenso ainda e, do outro lado da rua, tinha um bosque. Hoje, quando volto, não acho tão imenso assim, mas é grande: bastante espaço vazio para ser preenchido por corpos. Brincadeira boa era inventar aventuras, principalmente as perigosas, que exigiam subir em árvores, pular muros, ficar escondida. Estudar era mais um brinquedo. Enquanto a minha mãe lia e escrevia, quando trabalhava em casa, eu pedia “exercícios de matemática bem difíceis”, pra ficar do lado dela trabalhando também. Adorava ir pra escola. Uma escola singular. A gente voltava do recreio cansados e imundos, passava o restante da aula de pés descalços (fui criança de pés descalços), o caderno sempre sujava (a gente lavava bem a mão, mas às vezes um suor escorria, aí secava com a mão e... pronto). Acho que hoje mudou muito, mas na nossa época (o plural é porque incluo o meu irmão) a Escolinha (Escola Francisco de Assis) era formada por uma equipe de professores (as) corajosas (os) que nos amaram e brincaram muito conosco. Ali comecei a fazer teatro e a escrever. E lia muito.
Na quinta série tive que ir pro CEAP (Colégio Evangélico Augusto Pestana) porque a Escolinha fechou por falta de verbas. Um dia, meus pais foram chamados na escola porque meus coleguinhas haviam reclamado que eu tirava o sapato na aula. Num dia desses, ano passado (2007), chegando pra dar minha aula no Departamento de Arte Dramática, lembrei desse episódio da infância. Minha vontade foi voltar para o passado pra dizer pras professoras e coleguinhas: Hoje, na minha sala de aula, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, os alunos só entram descalços.
No ano seguinte (eu na sexta série) a Escolinha reabriu e, antes que meus pais soubessem, eu e meu irmão já estávamos matriculados.
Para fazer o segundo grau voltei ao CEAP. Cheguei e fui diretamente procurar informações sobre o grupo de teatro: Perdidos no Palco. Por três anos, duas vezes por semana, às noites, o palco do colégio era o nosso espaço. Ali participei da criação de três montagens. Com a última recebi um prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante, na etapa regional do Festival de Teatro Amador do Estado. No ano seguinte não pudemos ir para a etapa final porque eu e outros colegas já havíamos saído de Ijuí.
Em 1990 eu já estava em Porto Alegre, fazendo Engenharia Química na UFRGS (sempre gostei de matemática e eu era ótima aluna de química).
Outro espaço importante nessa memória do corpo foram as inúmeras horas dançando na Academia Adágio. Aos sete anos comecei a fazer aula de balé. E nunca parei. Cada ano que passava a dança ganhava mais tempo no meu dia. Fiz ballet, jazz, sapateado, dança moderna, flamenco, dança gaúcha, tudo o que vinha eu encarava. Aprendia a repetir os movimentos que me mostravam em frente a grandes espelhos. Os bastidores do mundo do espetáculo comecei a viver nas apresentações de final de ano da Academia. As primeiras viagens sozinha, ou em turma de colegas, foram para fazer curso de dança, em Porto Alegre, na Academia da Tony Petzhold, ou em Cruz Alta. Depois vieram as viagens para as apresentações. Eu e a Lise, minha vizinha e colega de dança, começamos a criar coreografias. Aos quinze anos, nós duas já estávamos dando aula de ballet, numa academia que a Raquel, nossa professora, abriu, bem próxima à nossa casa. No início deste ano, na Costa Rica, numa roda de músicos, que tocavam canções engajadas (esse adjetivo tem relação com o que quero expressar aqui, as músicas que tocavam não se limitavam a esta qualidade), depois de anos, ouvi Sobreviviedo, de Victor Heredia, e lembrei que esta foi a primeira música que escolhi para uma coreografia. Lembrei que esta escolha, naquela época, foi porque eu não queria apenas dançar passos (a praxi de coreografar era colocar os movimentos – passos formatados pelo estilo de dança – um depois do outro, no ritmo da música), queria expressar algo, mas como ainda não tinha clareza sobre as possibilidades da construção de significado na articulação do corpo, fui buscar o recurso na música.

A escolha
No final de fevereiro deste ano, na Costa Rica, depois de uma das apresentações de “Adélias, Marias, Franciscas...”, fui jantar com a Helena... Repito aqui o que escrevi nas minhas reflexões de viagem:
Elena Gutierrez, com toda sua história (sua dança, sua arte, sua fuga da ditadura do Chile, sua postura de mãe – concentrado de vida), me fez lembrar porque estou hoje aqui, nesse mundo de dança e teatro. Sempre dancei, sempre fiz teatro, desde niña, mas nunca pensava em ser bailarina ou atriz. Não tinha esse sonho... Muito estranho. Foi bem depois, já no último ano da engenharia, que num curso com o Fernando Peixoto, um curso que era de direção teatral, que eu não sei como fui parar lá não me lembro, mas um curso que era muita conversa, ele contando sobre sua história no teatro. A sua história era a história do Brasil. Foi naquele momento que decidi que era isso que eu queria. Não faço história do Brasil, até porque depois de estar na Costa Rica, descobri que o Brasil é grande demais. Mas tenho a sensação de estar fazendo a minha história e... sem modéstia... a história de bastante gente. Dá medo.
Um ano antes desse curso com o Fernando Peixoto já estava fazendo aulas de dança contemporânea com Eneida Dreher, que havia estudado no Folkwang Tanzstudio de Pina Baush. Nas aulas da Eneida aprendi, entre muitas coisas, que há relação entre respiração e movimento, que o pé no chão deve ser “como bosta de vaca”, e voltei a encontrar sentido para a dança, motivo para a dança no meu corpo. Então, acabei a engenharia e pedi ingresso diplomado para o curso de Arte Dramática. De presente de formatura, ganhei dos colegas engenheiros o livro Obras Completas de Nelson Rodrigues.
No primeiro ano de curso, Eneida me convidou para entrar no Terpsí-Teatro de Dança. Quando me dei conta eu já estava dançando profissionalmente, num dos grupos de dança mais importantes de Porto Alegre. No segundo ano de faculdade (1997), com alguns colegas, fundamos o grupo Maria e Cia. (embora eu tivesse vergonha do nome, eu não queria ser egocêntrica, mas os colegas insistiram, o nome era bonitinho) e encenamos uma peça que eu havia escrito, por encomenda de um grupo de teatro de uma escola em Panambi. A peça, Agora é Festa, falava de um grupo de adolescentes que preparava-se para uma festa, organizada pelo grêmio estudantil do colégio. Nos dirigiu, nesta montagem, Roberto Oliveira. Começou aí minha carreira profissional como atriz e dramaturga. Com Roberto e outros atores da cidade (Sandra Possani, Sergio Etchichury, Liane Venturela e Patrícia Fagundes), no ano seguinte, fundei o Depósito de Teatro, grupo do qual fiz parte até o início deste ano.

Teoria e prática.
Então, no segundo ano de faculdade eu já estava trabalhando profissionalmente na dança e no teatro. Aulas: espaço para problematizar a prática que vivia nos grupos. A cena, os ensaios e apresentações: espaço para experimentar uma avalanche de conhecimento que até mim chegava todos os dias. Desde esse início, teoria e prática complementavam-se, a interface entre a academia e o palco permeáveis, eu tentando criar coerência no meu corpo que jogava com esses dois espaços.
Como assim? Essa pergunta faço desde criança, quando não compreendo ou não me contento com uma dada explicação. Como assim? Sempre perguntei muito e hoje, como professora, no primeiro dia de aula, peço aos meus alunos que comecem a se fazer perguntas: pode ser uma única pergunta no semestre, mas ela deve acompanhá-los todos os dias de aula. Como uma pergunta sempre leva à outra...
A primeira crise, que detonou a minha necessidade pela pesquisa e pela busca da reinvenção da linguagem nos processos criativos, chegou antes do fim da faculdade: Não sei dançar! Fiz a pergunta a mim mesma: como assim? Não me contentei, encarei o medo e a necessidade de me provar que eu dançava e, esbarrando nos limites entre dança e teatro criei Adélias, Marias, Franciscas..., meu projeto de graduação, minha primeira construção de dramaturgia corporal, baseada na obra da escritora Adélia Prado. Comecei a perceber que a explicação para o “como assim?” também poderia ser formulada num outro discurso, diferente do discursivo, conceitual. Poderia ser formulada no corpo, na articulação da linguagem estética na materialidade do corpo (da carne, segundo Artaud). E comecei a criar meu conceito e prática de dramaturgia do corpo. Isso foi em 2000.
CORPO: Unidade do organismo vivo, em que não existem as dicotomias corpo-mente, razão-sentimento. Uma anatomia que guarda sistemas complexos de desejos, medos e paixões; matéria constituída de mistério, que ciência, filosofia e religião tentam decifrar. Aqui, trata-se de um corpo inserido num campo cultural historicamente datado e constituído por técnicas formativas.O corpo é processo, o qual se constitui da complexa rede de trocas de informações, de relações dinâmicas entre o indivíduo com o meio e com os outros indivíduos.
O Mestrado em Teatro, realizado na UDESC, sob orientação do Professor Milton de Andrade, com dissertação defendida em 2005, foi espaço para muito estudar, para descobrir diferentes maneiras de construir conhecimento e distintos modos de compreensão do mundo: da filosofia, da sociologia, da semiótica. Escolhi a semiótica como a minha lente. Vó Francisca (a senhora carola e analfabeta, que foi minha babá), quando ganhou seus primeiros óculos de minha mãe, a qual percebeu que ela não via a agulha pra costurar, olhou pra sua costurinha e disse com alegria: tá tudo declarado! Foi assim a semiótica pra mim: ficou tudo coerente, explicável, redondo, visível, declarado.
Transcrevo, aqui, parte da conclusão da minha dissertação, páginas 129 e 136:
Só agora nesse momento sinto o que sinto agora. Nesse aqui e agora entendo o que entendo e sinto que o que sentia era o que o que sentia. Como um sentimento de movimento. Algo que se repetia e pulsa e se repete e é agora. Um movimento que foi se fazendo de impulsos e pausas e mais impulsos e redes e saltos e socos e vazios cheios de outros movimentos que não juntava. Agora nesse momento agora o movimento nesse momento é outro que move em outros sentidos e ainda mais e mais e mais e agora e mais. Nunca mais aquele e agora esse que provoca e me coloca e me faz ser agora e com par partilhar. Brilhar talvez brilhar talvez amar. É só o mover é agora o corpo que pulsa e move e cria o agora o espaço nesse tempo que move e me move na direção do que me move. (E)motion.
(...) Somos feitos de traduções, de transcriação de gestos, de ritmos, de sussurros, de tons de voz, de odores, de toques, de distâncias, de olhares. O ator-dançarino pode agarrar essa idéia e trabalhar para aguçar seu sentido cinestésico, estimular a sinestesia e treinar as traduções em seu corpo, reconfigurando aquilo que lhe proporciona um lugar no mundo. Pode ser guloso por devaneios e provocar traduções de si próprio.
No seu processo cognoscitivo, a possibilidade do artista é ir se construindo de obras: construindo um corpo formado pela tensão de um traço, pela congruência de um acorde e um gesto, pela oposição de uma sentença, pelo volume de uma palavra, pela leveza de uma textura, pela força de uma cor, pelo contraste de um movimento.”

Já que estou fazendo enxertos, aproveito pra fazer mais um: parte do texto do projeto Penélope Bloom – uma experiência intertranscultural na prática e pesquisa cênica, desenvolvido com o ator e diretor costarriquenho Gerardo Bejarano. Este projeto foi enviado ao Ministério da Cultura (pela empresa Maria & Cia. – agora aos 35 anos me assumo), concorreu e ganhou o Prêmio Myrian Muniz de montagem cênica, em 2007, e estréia dia 17 de abril de 2008. Trata-se de uma transcriação cênica do último capítulo do romance Ulisses, de James Joyce. Este enxerto foi escrito por mim, numa “linguagem de projeto” e colo aqui porque resume essa trajetória de pesquisa e criação:
Desde a criação de “Adélias, Marias, Franciscas...”, espetáculo fruto do seu projeto de graduação, que Maria Falkembach persegue a concretização no corpo de dois conceitos, a fim de buscar clareza, precisão e acuidade na construção de signos estéticos pelo corpo cênico: 1. dramaturgia do corpo; 2. transcriação da linguagem literária para a linguagem cênica construída na materialidade do corpo.
Neste primeiro espetáculo, a fonte foi Adélia Prado, sua poesia e sua prosa. A atriz criadora construiu a dramaturgia do espetáculo com base em ações dramáticas traduzidas do texto de Adélia, buscando a tradução tanto do conteúdo como da forma (congruência estética). O segundo espetáculo nesta linha criado foi o “Grávida”, este um espetáculo de dança que buscou traduzir para o corpo, desta vez, um texto oral, fruto de entrevistas com gestantes (ver programa do espetáculo em anexo).
Assim, em seu mestrado, a atriz e bailarina Maria Falkembach, buscou sintetizar estas experiências e realizou uma pesquisa teórico-prática sobre a transcriação da obra da modernista Gertrude Stein (Dramaturgia do corpo e reinvenção de linguagem: transcriação de retratos literários de Gertrude Stein na composição do corpo cênico). Foi neste trabalho que pôde aprofundar e teorizar os conceitos anteriormente trabalhados de modo empírico. Além dos conceitos, pôde desenvolver uma idéia de treinamento e de princípios fundamentais na configuração do corpo cênico e na criação da ação dramática na escritura da dramaturgia do corpo.
Stein, escritora americana que estudou medicina com William James, o criador do termo “fluxo de consciência” e desenvolveu sua literatura na busca por representar “o que as pessoas são”, também teorizou sobre sua composição, estimulou inúmeros artistas modernistas (principalmente os cubistas) e influenciou os jovens escritores, entre eles, Joyce.
Então, o estudo aprofundado sobre a obra de Stein e seu modo de composição, realizado anteriormente, torna-se aqui fundamental para o processo de transcriação da obra de Joyce. Assim, a criação do espetáculo Penélope é evidentemente uma continuidade deste projeto de pesquisa e de criação da atriz.
O projeto Penélope Bloom acabou levando-me para a Costa Rica[1].

Um pouco mais sobre o ensinar
Dou aula de dança desde os 15. Na engenharia dava aula de cálculo I, fui monitora. Acho que sempre dei aula. Ensinar também era jogar, brincar. Ensinar e aprender sempre foram parte da vida, ações complementares. Em casa e na escola. E agora que penso em vida como movimento: ensinar e aprender é mover-se, melhor se feito com a coluna.
Dei aula em projetos que buscam a democratização do acesso à arte e que buscam na arte o que chamam de resgate da cidadania, eu prefiro chamar de retomada do corpo, da vida (movimento) e das relações. Dei aula nas oficinas de teatro do Depósito de Teatro, workshops em diversos lugares e cidades...
Dou aulas sem espelho e nem ensino passos. Procuro que a aula seja um espaço que promove experiências para o desenvolvimento de percepções e de auto-conhecimento, que provoca vivências para a ampliação das possibilidades de movimentos, de voz, de devaneios e de configuração de dramaturgia do corpo. E às vezes sofro porque na escola não há espaço para o corpo e tais experiências.
Minhas últimas experiências como professora foram no Departamento de Arte Dramática da UFRGS (onde dei por dois anos as disciplinas Ateliê de Criação I e II e Laboratório de Técnicas Corporais I e II) e na Maestria Profesional em Danza da Universidade Nacional de Costa Rica (onde dei duas disciplinas concentradas: Análise do Movimento e Técnica de Dança III). Acredito piamente que meus alunos cresceram com esta experiência, pois a intensidade com que vivi este espaço e tempo me provocou grandes amadurecimentos. Descobri que a teoria (provocada pelas perguntas dos alunos) pode ser revelada pelo corpo.
Isto é viável a partir da criação de um ambiente que é construído no limite entre o ensino, a pesquisa e a criação, entre a teoria e a prática e é possível a partir da capacidade de quem constitui esse ambiente suportar a indeterminação do processo, o risco, pois sonha e confia que linguagem, conceitos e pensamentos, os quais oscilam entre razão e devaneio, entre a ciência e a poesia, são construídos na experiência.

Meu último texto, escrito para o programa do espetáculo Penélope Bloom, que estréia dia 17 de abril:

Sobre o processo de criação e eu uma.

Tudo começou com Adélia Prado. Talvez tudo tenha começado com o meu medo de não saber dançar. Mesmo envergonhado, esse corpo procurou e encontrou Adélia. Que me deu coragem, e ainda dá.
Na procura de compor como Gertrude Stein descobri um nome para o que fazia: transcriação. Uma reinvenção uma recomposição uma rearticulação no corpo de uma que queria ser uma daquela escrita que outra uma buscava para ser uma.
Agora o desafio de destecer Joyce e tecer corpos num espaço-tempo cênico. Esse tecido está cheio de teoria teatral corporal o escambal. Mas nesse momento só lembro das noites paralelas à noite de Molly, meu corpo noite-vigília vivendo os movimentos desta uma. Neste agora bem aqui só penso no eu que esse processo produziu. No confronto constante com o masculino de Joyce e do diretor, na busca do meu feminino.
Penélope Bloom: Reafirmação de meu corpo. Corpo Delícia. Constatação do meu poder. Mulher-vida-possibilidade-fertilidade. Afirmação desse modo complexo feminino de ser. Sim à não-razão. Molly transborda mulher. Possibilidade de reivindicar meu masculino femininamente. Duro e macio ao mesmo tempo. Uma mistura de ameixa e maçã.
O recomeçar a tecer é retomar, todos os dias, os pequenos fatos, as pequenas (rel)ações, laços de afecto, infecções, que nos fizeram. E destecer é desconstruir, desfiar-se, desafiar-se para se reinventar. A busca do corpo que se faz e se re-faz, que se desmancha no outro para manchar-se em si mesma.
Recomeçar. Reapaixonar-se. Remontar o tesão pelo existir. Sempre sempre sempre.
Verdade ou mentira, meu corpo vive e enche o dia-a-dia e toda a minha vida.


[1] Este projeto trata da montagem de um espetáculo que parte de uma pesquisa cênica de criação de linguagem teatral atravessada pela intertransculturalidade. Propõe uma experiência de intercâmbio cultural complexa a partir da criação de uma obra artística que não ignora (e evidencia) identidades e diferenças culturais nas escolhas que ocorrem durante o processo.
Penélope Bloom, título da peça que será construída, é a personagem que protagoniza o último capítulo do romance Ulisses, de James Joyce, e o referido espetáculo, que será construído a partir da adaptação do texto citado.
Aqui, esta personagem, a qual se situa entre as mais importantes da literatura ocidental, será composta por duas atrizes, uma brasileira, outra costarriquenha, portanto por dois corpos constituídos de múltiplos significantes culturais.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Penélope Bloom no "Segundas Dramáticas"

SEGUNDAS DRAMÁTICAS
Dia 19 de Maio
18 horas
Sala Alziro Azevedo
Av. Salgado Filho, 340

Reflexão sobre o processo de criação do espetáculo
Penélope Bloom
Composição de uma dramaturgia cênica dentro de uma pesquisa de transcriação e de intertransculturalidade

Com: Maria Falkembach, Gerardo Bejarano,
Leandro Maia e Júlia Rodrigues

Artistas e sua necessidade orgânica de se reinventar e, para isto, reinventar sua linguagem, confrontam os modelos vigentes. No teatro existem exemplos de artistas que chegaram a travar uma luta contra o teatro então vigente (Craig e Artaud foram dois dos mais inflamados). Ao mesmo tempo, a redescoberta de tradições teatrais (como um exemplo: a commedia dell’arte) alimenta o movimento do ato criador da cena.
Pois foi com esta necessidade, de se reinventar, que Penélope Bloom vai evidenciar o teatro como espaço privilegiado para “pensar, entender a complexidade humana numa perspectiva antropológica que integre o único e o múltiplo” (conceito de intertranscultural). Assim, duas culturas e poéticas teatrais distintas confrontam-se e complementam-se em cena, provocando os vazios necessários para um processo de criação.

A peça propõe uma leitura contemporânea de um dos maiores clássicos da literatura mundial: “Ulisses”, de James Joyce. Uma co-produção Brasil-Costa Rica que evidencia a multiplicidade de linguagens (teatro, dança, música e literatura) construídos dentro de uma experiência de intercâmbio cultural. A personagem Molly Bloom – marco do modernismo literário – é vivida ao mesmo tempo por duas atrizes: a brasileira Maria Falkembach, e a costarriquenha Vicky Montero. A direção é do costarriquenho Gerardo Bejarano e a trilha sonora é composta pelo brasileiro Leandro Maia.

Para ver fotos do espetáculo e textos relacionados, acessar o blog http://dramaturgiadocorpo.blogspot.com

Penélope Blooom retorna em cartaz no Teatro Renascença (av. Erico Veríssimo, 307), nos dias 20, 21, 22, 28 e 29 /05 e 3, 4 e 5/06, às 21h.

SEGUNDAS DRAMÁTICAS
Encontros, leituras, debates, eventos.
Sala Alziro Azevedo
Av. Salgado Filho, 340
ENTRADA FRANCA
DAD/ CADi/PPGAC
Instituto de Artes/UFRGS - 100 Anos
Toda a semana, às 18 horas!

terça-feira, 13 de maio de 2008

PENÉLOPE BLUM

Agradecido pelo convite a participar nesta mesa¹, espero poder falar sobre uma declaração de amor.
Antes, contudo umas notas para contextualizar o assunto. Estamos a falar de um romance, mas não de um romance qualquer, nem sequer de um entre outros maravilhosos romances. Estamos falando, senão do último romance, daquele que fecundou todos os que vieram depois: Ulisses, de James Joyce.
Escrito entre 1914 e 1922, desenvolve-se em torno a três personagens o quais impregnam com seu selo às três partes do romance: Stephen Dedalus, Poldy e Molly, os dois últimos, respectivamente, hipocorísticos de Leopold Paula Bloom e Marion Bloom.
Os que o consideraram o cume de todos os romances, chegaram a esta consideração devido a seu caráter de paródia de A Odisséia, de Homero. O substrato para tal estava contido em uma frase atribuída a Kierkegaard: toda fase histórica termina com a paródia de si própria. Era o que tinha acontecido com o Don Quixote em relação aos romances de cavalaria.
Ulisses, dizem, nasceu com um estigma: o de difícil – ou mesmo impossível – leitura. Pode ser! Mas não se pode deixar de lembrar que as edições das duas traduções ao português estão esgotadas. E a segunda mal tem dois anos.
As dificuldades parecem dever-se à duas vertentes: de um lado um certo desconhecimento da intimidade do mito grego e, de outro, o fato de utilizar um inglês impregnado de dialeto irlandês e também de outras ilhas britânicas, do slang americano, de dialetos não expressos literariamente, além de citações e alusões veladas, da Bíblia e dos escolásticos, de obras escritas em grego, latim, francês, italiano, hebraico, alemão, quando utiliza muitas vezes palavras no idioma original, sem a menor cerimônia.
A relação com o clássico de Homero tem sido estabelecida assim: Os três primeiros capítulos da parte S, em que traz a cena o personagem de O retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus, compreende-se como uma referência ao filho de Odisseu, Telêmaco, e representa a arte. Os doze capítulos seguintes levam a marca de Leopold Bloom; uma paródia do próprio Odisseu a viver sua odisséia de 18 anos no único dia 16 de junho de 1904, e representa a ciência. Os três últimos capítulos têm como marca o M de Molly Bloom, onde encontraremos o último deles composto com 8 frases, sem nenhuma vírgula e um único ponto, distribuídas ao longo de 42 páginas. Representa a mãe-terra. Estou de acordo. Contudo, para mim, insiste uma frase do Fausto, de Goethe: "Nicht Kunst und Wissenschaft allein, Geduld will bei dem Werke sein." (Faust I). Se o filho e o pai representam a arte e a ciência, Molly por certo há de representar também a Geduld, a paciência.
E é aqui que nos defrontamos com o monólogo que servirá de base a peça Penélope Bloom.É o capítulo 18.
Chama-se Penélope. Uma homenagem ao capítulo XXIII de A Odisséia. Seu tema: o reencontro.
Depois de 18-20 anos, Odisseu voltara vencendo todos os outros pretendentes. Disfarçado de mendigo, Penélope não conseguia reconhece-lo. Convenceu-a um segredo de alcova – o tálamo construído sobre o tronco de uma oliveira de folhas alongadas [XXIII:190-91].
A metáfora de Homero é irretocável: é no inamovível tálamo que se sabe quem é quem.
É sobre esta personagem, Penélope, citada sempre como exemplo da esposa fiel, que Joyce irá construir a figura parodística da mal dita infiel Molly Bloom.
Conheçamos de Molly o que se pode conhecer. Veremos que não é muito. Seu monólogo não tem a mesma consistência do de Stephen Dedalus, um sujeito que veio d’a lus – permitam que o diga luz assim, com ‘s’ – inversamente para a sonora ‘ded’ (death), para a morte. Ela faz um balanço de sua vida, recorda, mas não se analisa. Enquanto Stephen se compara com outros buscando saber quem é, Molly, ao comparar-se com outras, fica restrita a um primário e alienante nível de identificação. Quem mais parece falar, é seu corpo.
Antes de entrarmos no monólogo propriamente dito, lembremos que de sua mãe, Lunita Laredo, ela não sabe nada (p. 773), ou morreu muito cedo, ou então desertou. Casou-se com Leopold Bloom, um peripatético vendedor de anúncios para jornal, com quem teve uma filha, Milly, e um filho natimorto – Rudy; a partir dessa perda seu marido tornou-se praticamente impotente. Molly, por sua vez, trabalha como cantora em um bar, o Palace, e é amante de seu agente teatral, Blazes Boylan. Como não é difícil de perceber, Molly está sempre às voltas com a falta, - para citar Churchil – de fracasso em fracasso, mas sempre com entusiasmo. Mas é verdade que a frase de Antonio Maria e Fernando Lobo em Ninguém me ama, poderia estar também na boca de Molly, que então diria: - Vim pela noite tão longa, de fracasso em fracasso.Vamos então ao monólogo.
Não é o mais difícil de ler. Se não tem pontuação, tem ritmo, o que facilita em muito a leitura. E também não tem tantas línguas, embora grande parte da gíria aí utilizada tenha que ver com o llanito. Pois lhes conto: Molly é originária de Gibraltar, uma península do território espanhol cedido ao Reino Unido pelo tratado de Utrech, em 1713. Aí, além do inglês, sua língua oficial, fala-se também o espanhol e o llanito, formado pelo inglês e o espanhol, porém com uma influência do árabe, do genovês, do italiano, do ladino, do maltês e do hebraico, mas não é nada difícil, tudo está dito com o mais conhecido de cada língua. Mas aqui, o que me chama atenção é o que o llanito tem em comum com este projeto Penélope Blum: outra vez a confluência do inglês com o espanhol, ainda que aqui o inglês esteja representado pelo português, o que certamente não será sem conseqüências.
Eu lhes dizia que o monólogo de Molly Bloom constituía-se em uma declaração de amor. Pois vejamos.
O cenário é uma cama e o tempo da cena o dia seguinte, as primeiras horas da madrugada do dia seguinte ao 16 de junho de 1904. O quê quer dizer isto? Que o que aí se descreve não tem lugar no dia [a dia]?
Molly Bloom é uma mulher infiel, uma paródia da fida Penélope, diz-se. Pois então. Uma das origens do deus Pã, uma das figuras mais populares de todos os tempos, é atribuída aos amores de Penélope com Hermes. Vejam só! E outra ainda, atribui sua origem aos amores de Penélope com todos os seus pretendentes, daí o sentido de ‘todo’ atribuído ao deus. De modo que a fidelidade de Penélope não é assim tão indiscutível. E o adultério de Marion?
Estamos lembrados que a cama é o lugar da verdade. E aí está Marion Bloom. Antonio Houaiss chama este monólogo de “solissômnio” – uma palavra que ele não incluiu nem no seu dicionário! – quem sabe para diferenciá-lo do monólogo de Stephen Dedalus. Ela está em um estado crepuscular, entre o sono e a vigília, entre o sono e o sonho. Seria uma maneira de interpretar a ausência de pontuação, uma forma de representar a atemporalidade onírica.
Ela começa surpresa com a mudança do marido. Ele, que sempre a servira, viera para a cama encomendando para seu desjejum um café acompanhado de dois ovos. É o seu primeiro sim! Quando se sente desejada, é dessas mulheres que só dizem sim. Um carvoeiro? – Sim. Um bispo? – Sim. O padre Corrigan a quis? – Sim. Bartell dArcy quer beijá-la depois de ter cantado a Ave Maria, de Gounod? – Sim. Harold a persegue pela chuva até ela dizer sim? – Oh! Maria Santíssima, sim! E Gardner, circuncidado ou não? – Sim. Henri Doyle, pedindo com 8 papoulas, no dia oito? Não beija tão bem como Gardner, mas sim. Na segunda-feira, sim. E o velho Goodwin, de rosto gelado? – Sim. Val Dillon, grande e selvagem? – Sim. O velho Larry, por uma garrafa de clarete que ninguém mais queria? – Sim. Alguém mais? Quem sabe uma banana? – Isso não, pois teme pudesse quebrar e ficar perdida em algum lugar lá dentro (789). No mais, todos páginas viradas no seu folhetim.
Com Boylan era diferente. Ele notava a forma de seu pé mesmo na presença de seu marido, o Poldy, querido! Uma cena que parecia excitá-lo. Quando se diz que dois é bom, três é demais, usa-se uma fórmula que não serve para todos os casos. Boylan, o terceiro, bem pode ser condição da felicidade conjugal. E então Molly lembra do dia em que foi pedida em casamento. Desde esse dia, ela só quer dizer sim. Em todas as perguntas, repete-se sempre esta que representou para ela a máxima expressão do desejo de um pelo outro, a máxima expressão do desejo de Leopold por Marion, a máxima expressão do desejo do homem pela mulher.

Depois de ter visto a peça, poderemos dizer com S. João:
- E o Verbo se fez carne.
[João, 1:14.]
Luiz-Olyntho Telles da Silva

1. Mesa na Livraria Cultura, em Porto Alegre, na companhia de Gerardo Bejanrano, Maria Falkenbach e Rubia Abs, respectivamente Diretor e Atriz da peça Penélope Bloom e a Advogada da ong Themis.

sábado, 10 de maio de 2008

Penélope Bloom retorna em cartaz

Dias 20, 21, 22, 28 e 29 /05 e 3, 4 e 5/06
Às 21 horas
No Teatro Renascença (av. Erico Veríssimo, 307)
Ingressos R$15,00, R$10,00 (pessoas com 60 anos ou mais, convênio ZH e promoções a critério da produção) e R$ 7,50 (estudantes).