Para maiores informações sobre este encontro, acessar os sites
www.verticebrasil.net
http://www.themagdalenaproject.org
Então, agora somos Madalenas? Um riso frouxo escapou de cada uma depois da pergunta da Natália (Araújo), tímida, mas inquieta, refletindo o inefável que ligava nossos estômagos naquele começo de fim de encontro. Delícia de pergunta, que saiu certeira (percebi porque meu corpo se avivou e então vi, junto com o suspiro sonoro, a mudança de postura no corpo das mulheres da roda). A pergunta da Natália soou como o passo que demos juntas, no primeiro dia de oficina da Jill (Greenhalgh). Uma manhã inteira para darmos um passo juntas. Pensando agora, parece pouco tempo, tem gente que passa a vida e não consegue isso. E conseguimos mais: estar juntas antes do passo. Fui aprendendo a conhecer essas mulheres pelo primeiro passo.
O que é essa vontade de ser Madalena?
Encontrei algumas respostas:
1. É a vontade de conhecer o ser humano na ação e na relação, no passo. Essa é a possibilidade do teatro, talvez a única possibilidade de conhecer o humano. Por isso o teatro é tão importante. Pena que tanta gente ainda não descobriu isso.
2. É a vontade de inventar critérios críticos e linguagens. E a vontade de acabar com essa fofoca de que mulheres não conseguem ser amigas. Quem foi o malandro que inventou isso? E quem inventou o modelo de amizade? Outro malandro? Ou foi uma tal avó que tinha aprendido com... não importa neste momento. De repente, ficou evidente que se tratam de critérios. Anotei quando a Jill falou: “o Projeto Magdalena é um lugar onde meu trabalho pode ter vida e encontrar critérios críticos diferentes (...). Nós mulheres temos gasto muita energia para nos inserir nesse mundo masculinista. (...) A arte tem que ser fiel às experiências políticas, sociais e biológicas para que seja autêntica. E estas experiências são diferentes para mulheres e homens.” Gostei da palavra critério por ser uma regra que a gente mesmo inventa, ou que ela mesma se inventa na necessidade. A própria palavra critério, tão apagadinha, revelou-se a partir de outros critérios. O perigo? Esconder-se atrás de critérios de proteção e fugir da crítica? Esse perigo não existe, pois se a necessidade desses novos critérios é justamente para construir espaços de exposição, do risco. Nesses cinco dias pude compartilhar a experiência de outros critérios de crítica, experiência do risco e da exposição. Como se constrói isso? Acho que dando o primeiro passo, juntas.
3. É a afirmação do pensamento e do conhecimento de atriz. Não anotei, mas não precisei, pois não esqueci do que a Júlia (Varley) falou sobre o conhecimento tácito do teatro, da construção de conhecimento e pensamento pela via da experiência teatral.
Tenho estudado muito e às vezes tenho uma sensação que nós, ao fazer teoria da arte, do teatro, da dança, estamos nos tornando semióticos, neurofisiologistas, antropólogos... nada espantoso para os tempos da interdisciplinaridade. Cheguei a me perguntar (e escrevi em algum papelzinho pra depois desenvolver) se não seria possível construir uma teoria a partir de critérios artísticos. Por isto foi tão revelador quando a Júlia explicou a relação entre a periferia e o centro a partir da noção de equilíbrio de luxo. Estar na periferia é estar fora do centro, portanto em equilíbrio instável e em risco. Foi esse o seu modo de explicar o Projeto Magdalena, que, ao longo dos seus 22 anos foi conformando-se de um modo que encontrou seu “equilíbrio” fora do centro, no teatro desenvolvido por mulheres na periferia. As Madalenas vivem o risco e a disponibilidade para o movimento.
Talvez a necessidade do apego à semiótica, à neurofisiologia, à antropologia, seja porque o mundo não tem idéia da complexidade do conhecimento de uma atriz. A compreensão da vida e do humano que faz parte de nosso ofício é, às vezes, assombrosa. E o mundo perde quando não aproveita isso.
Agora, seguindo o modo de pensamento da Júlia, vou pensar como atriz: Cada nova personagem nos exige novos critérios. Compor uma personagem significa passar por um processo de reconstruir o próprio corpo a partir de outros padrões, de outros pontos de vista, de outros critérios de relação com o mundo. Para construir uma personagem não posso julgar, tenho que encontrar a sua forma dinâmica, o seu corpo em relação (extensão do que a personagem é). Está implícito no trabalho da atriz a possibilidade de escolher e inventar critérios. É inerente ao nosso ofício as múltiplas perspectivas, que nos convocam a cada dia inventar um novo modo de cortar cebola. Também é próprio do conhecimento da atriz conter o mistério, a familiaridade com as epifanias.
Acho que cabe aqui um parêntese sobre a cebola. Tudo começou com a cena “A Cebola”, que a Maysa (Lepique) apresentou naquela tarde forte em que cada uma de nós se descascava mais um pouquinho. Não chorei com a cebola, mas não controlei quando tentei contar que a querida Maria Lúcia Raymundo não estava ali por motivos maiores. É inacreditável (não é esse o adjetivo, mas não encontro outro) que a Lucinha esteja nesse coma a cinco anos. Difícil recomeçar o texto, como foi difícil começar a cena depois de evocá-la. Mas sigo... Mais que a cebola, o que aparecia na cena da Maysa era a faca e as suas pernas (é disso que lembro agora). Mas lá no meu modo de fazer associações e construir conhecimento, pensei que naqueles dias minhas camadas foram ficando mais transparentes. E no sábado, naquela roda no sol, quando chegou minha vez de falar sobre a experiência do encontro, pensei que eu estava entendendo, de fato, esse tal empoderamento, palavra apropriada pelo discurso político. Lembrei que quando eu era casada com o meu diretor teatral, ele discutia comigo quando eu não cortava a cebola da “maneira certa”. Isso não era em cena, era em casa mesmo, quando eu cortava cebola pra fazer comida. Eu nunca consegui aprender qual era a tal “maneira certa”. De qualquer modo que eu cortasse, os pedaços iam ficar iguais. Não entendia. E juro que me esforçava para entender a lógica dele. Eu tentava decorar, mas sempre esquecia qual era a “maneira certa”. E várias vezes me senti burra porque não sabia. Depois de algum tempo separada, fui cortar cebola, e foi indescritível a sensação de liberdade por poder cortar a cebola do modo que eu queria. Hoje, cada dia, invento um jeito diferente. Aprendi, neste ano, a ralar a cebola. É ótimo! Qualquer dia desses meto do liquidificador.
No Vértice, a cada dia eu conseguia perceber um pouquinho mais de cada uma, sem ter que dissecá-las, pois não há diferença entre interno e externo, assim como não há diferença entre as camadas da cebola.
4. É a vontade de ser impura.
Tenho lido muito sobre hibridismo, linguagens híbridas. Parece necessidade de quem é puro. E um dos conceitos relacionados ao híbrido é justamente a impureza, junto com cruzamento de fronteiras, mas também mestiço, bastardo. Linguagem pura pra mim é tão difícil de entender quanto cortar cebola da maneira certa. Pureza cheira fascismo e ignorância. Eu já sou mestiça e bastarda desde um meu bisavô e uma minha tataravó (desses existe conhecimento, talvez eu já tenha sido antes). E através de minhas linhagens cruzei diversas vezes as fronteiras, por vários motivos: desbravadora, fugitiva, escrava. É bom pensar em ser impura, não ter que carregar a imagem da Maria Imaculada. Pensar em Madalenas, no plural. Impuras e capazes de ver e viver no desequilíbrio da vida, construindo um equilíbrio dinâmico.
Deslocar o centro.
Viver a periferia para ser múltipla.
Compor entre, em trânsitos.
Encontrando novas conformações a partir das novas relações entre as periferias: variação de distância entre o calcanhar e a palma da mão, o cotovelo e o joelho... (pensando como atriz). Criando a expressão, na dinâmica da periferia, do centro que se desloca. Um centro fluído, instável.
No Vértice Brasil ser Madalena talvez signifique essa impureza, de raça, de culturas, de poéticas.
www.verticebrasil.net
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Então, agora somos Madalenas? Um riso frouxo escapou de cada uma depois da pergunta da Natália (Araújo), tímida, mas inquieta, refletindo o inefável que ligava nossos estômagos naquele começo de fim de encontro. Delícia de pergunta, que saiu certeira (percebi porque meu corpo se avivou e então vi, junto com o suspiro sonoro, a mudança de postura no corpo das mulheres da roda). A pergunta da Natália soou como o passo que demos juntas, no primeiro dia de oficina da Jill (Greenhalgh). Uma manhã inteira para darmos um passo juntas. Pensando agora, parece pouco tempo, tem gente que passa a vida e não consegue isso. E conseguimos mais: estar juntas antes do passo. Fui aprendendo a conhecer essas mulheres pelo primeiro passo.
O que é essa vontade de ser Madalena?
Encontrei algumas respostas:
1. É a vontade de conhecer o ser humano na ação e na relação, no passo. Essa é a possibilidade do teatro, talvez a única possibilidade de conhecer o humano. Por isso o teatro é tão importante. Pena que tanta gente ainda não descobriu isso.
2. É a vontade de inventar critérios críticos e linguagens. E a vontade de acabar com essa fofoca de que mulheres não conseguem ser amigas. Quem foi o malandro que inventou isso? E quem inventou o modelo de amizade? Outro malandro? Ou foi uma tal avó que tinha aprendido com... não importa neste momento. De repente, ficou evidente que se tratam de critérios. Anotei quando a Jill falou: “o Projeto Magdalena é um lugar onde meu trabalho pode ter vida e encontrar critérios críticos diferentes (...). Nós mulheres temos gasto muita energia para nos inserir nesse mundo masculinista. (...) A arte tem que ser fiel às experiências políticas, sociais e biológicas para que seja autêntica. E estas experiências são diferentes para mulheres e homens.” Gostei da palavra critério por ser uma regra que a gente mesmo inventa, ou que ela mesma se inventa na necessidade. A própria palavra critério, tão apagadinha, revelou-se a partir de outros critérios. O perigo? Esconder-se atrás de critérios de proteção e fugir da crítica? Esse perigo não existe, pois se a necessidade desses novos critérios é justamente para construir espaços de exposição, do risco. Nesses cinco dias pude compartilhar a experiência de outros critérios de crítica, experiência do risco e da exposição. Como se constrói isso? Acho que dando o primeiro passo, juntas.
3. É a afirmação do pensamento e do conhecimento de atriz. Não anotei, mas não precisei, pois não esqueci do que a Júlia (Varley) falou sobre o conhecimento tácito do teatro, da construção de conhecimento e pensamento pela via da experiência teatral.
Tenho estudado muito e às vezes tenho uma sensação que nós, ao fazer teoria da arte, do teatro, da dança, estamos nos tornando semióticos, neurofisiologistas, antropólogos... nada espantoso para os tempos da interdisciplinaridade. Cheguei a me perguntar (e escrevi em algum papelzinho pra depois desenvolver) se não seria possível construir uma teoria a partir de critérios artísticos. Por isto foi tão revelador quando a Júlia explicou a relação entre a periferia e o centro a partir da noção de equilíbrio de luxo. Estar na periferia é estar fora do centro, portanto em equilíbrio instável e em risco. Foi esse o seu modo de explicar o Projeto Magdalena, que, ao longo dos seus 22 anos foi conformando-se de um modo que encontrou seu “equilíbrio” fora do centro, no teatro desenvolvido por mulheres na periferia. As Madalenas vivem o risco e a disponibilidade para o movimento.
Talvez a necessidade do apego à semiótica, à neurofisiologia, à antropologia, seja porque o mundo não tem idéia da complexidade do conhecimento de uma atriz. A compreensão da vida e do humano que faz parte de nosso ofício é, às vezes, assombrosa. E o mundo perde quando não aproveita isso.
Agora, seguindo o modo de pensamento da Júlia, vou pensar como atriz: Cada nova personagem nos exige novos critérios. Compor uma personagem significa passar por um processo de reconstruir o próprio corpo a partir de outros padrões, de outros pontos de vista, de outros critérios de relação com o mundo. Para construir uma personagem não posso julgar, tenho que encontrar a sua forma dinâmica, o seu corpo em relação (extensão do que a personagem é). Está implícito no trabalho da atriz a possibilidade de escolher e inventar critérios. É inerente ao nosso ofício as múltiplas perspectivas, que nos convocam a cada dia inventar um novo modo de cortar cebola. Também é próprio do conhecimento da atriz conter o mistério, a familiaridade com as epifanias.
Acho que cabe aqui um parêntese sobre a cebola. Tudo começou com a cena “A Cebola”, que a Maysa (Lepique) apresentou naquela tarde forte em que cada uma de nós se descascava mais um pouquinho. Não chorei com a cebola, mas não controlei quando tentei contar que a querida Maria Lúcia Raymundo não estava ali por motivos maiores. É inacreditável (não é esse o adjetivo, mas não encontro outro) que a Lucinha esteja nesse coma a cinco anos. Difícil recomeçar o texto, como foi difícil começar a cena depois de evocá-la. Mas sigo... Mais que a cebola, o que aparecia na cena da Maysa era a faca e as suas pernas (é disso que lembro agora). Mas lá no meu modo de fazer associações e construir conhecimento, pensei que naqueles dias minhas camadas foram ficando mais transparentes. E no sábado, naquela roda no sol, quando chegou minha vez de falar sobre a experiência do encontro, pensei que eu estava entendendo, de fato, esse tal empoderamento, palavra apropriada pelo discurso político. Lembrei que quando eu era casada com o meu diretor teatral, ele discutia comigo quando eu não cortava a cebola da “maneira certa”. Isso não era em cena, era em casa mesmo, quando eu cortava cebola pra fazer comida. Eu nunca consegui aprender qual era a tal “maneira certa”. De qualquer modo que eu cortasse, os pedaços iam ficar iguais. Não entendia. E juro que me esforçava para entender a lógica dele. Eu tentava decorar, mas sempre esquecia qual era a “maneira certa”. E várias vezes me senti burra porque não sabia. Depois de algum tempo separada, fui cortar cebola, e foi indescritível a sensação de liberdade por poder cortar a cebola do modo que eu queria. Hoje, cada dia, invento um jeito diferente. Aprendi, neste ano, a ralar a cebola. É ótimo! Qualquer dia desses meto do liquidificador.
No Vértice, a cada dia eu conseguia perceber um pouquinho mais de cada uma, sem ter que dissecá-las, pois não há diferença entre interno e externo, assim como não há diferença entre as camadas da cebola.
4. É a vontade de ser impura.
Tenho lido muito sobre hibridismo, linguagens híbridas. Parece necessidade de quem é puro. E um dos conceitos relacionados ao híbrido é justamente a impureza, junto com cruzamento de fronteiras, mas também mestiço, bastardo. Linguagem pura pra mim é tão difícil de entender quanto cortar cebola da maneira certa. Pureza cheira fascismo e ignorância. Eu já sou mestiça e bastarda desde um meu bisavô e uma minha tataravó (desses existe conhecimento, talvez eu já tenha sido antes). E através de minhas linhagens cruzei diversas vezes as fronteiras, por vários motivos: desbravadora, fugitiva, escrava. É bom pensar em ser impura, não ter que carregar a imagem da Maria Imaculada. Pensar em Madalenas, no plural. Impuras e capazes de ver e viver no desequilíbrio da vida, construindo um equilíbrio dinâmico.
Deslocar o centro.
Viver a periferia para ser múltipla.
Compor entre, em trânsitos.
Encontrando novas conformações a partir das novas relações entre as periferias: variação de distância entre o calcanhar e a palma da mão, o cotovelo e o joelho... (pensando como atriz). Criando a expressão, na dinâmica da periferia, do centro que se desloca. Um centro fluído, instável.
No Vértice Brasil ser Madalena talvez signifique essa impureza, de raça, de culturas, de poéticas.
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