Agradecido pelo convite a participar nesta mesa¹, espero poder falar sobre uma declaração de amor.
Antes, contudo umas notas para contextualizar o assunto. Estamos a falar de um romance, mas não de um romance qualquer, nem sequer de um entre outros maravilhosos romances. Estamos falando, senão do último romance, daquele que fecundou todos os que vieram depois: Ulisses, de James Joyce.
Escrito entre 1914 e 1922, desenvolve-se em torno a três personagens o quais impregnam com seu selo às três partes do romance: Stephen Dedalus, Poldy e Molly, os dois últimos, respectivamente, hipocorísticos de Leopold Paula Bloom e Marion Bloom.
Os que o consideraram o cume de todos os romances, chegaram a esta consideração devido a seu caráter de paródia de A Odisséia, de Homero. O substrato para tal estava contido em uma frase atribuída a Kierkegaard: toda fase histórica termina com a paródia de si própria. Era o que tinha acontecido com o Don Quixote em relação aos romances de cavalaria.
Ulisses, dizem, nasceu com um estigma: o de difícil – ou mesmo impossível – leitura. Pode ser! Mas não se pode deixar de lembrar que as edições das duas traduções ao português estão esgotadas. E a segunda mal tem dois anos.
As dificuldades parecem dever-se à duas vertentes: de um lado um certo desconhecimento da intimidade do mito grego e, de outro, o fato de utilizar um inglês impregnado de dialeto irlandês e também de outras ilhas britânicas, do slang americano, de dialetos não expressos literariamente, além de citações e alusões veladas, da Bíblia e dos escolásticos, de obras escritas em grego, latim, francês, italiano, hebraico, alemão, quando utiliza muitas vezes palavras no idioma original, sem a menor cerimônia.
A relação com o clássico de Homero tem sido estabelecida assim: Os três primeiros capítulos da parte S, em que traz a cena o personagem de O retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus, compreende-se como uma referência ao filho de Odisseu, Telêmaco, e representa a arte. Os doze capítulos seguintes levam a marca de Leopold Bloom; uma paródia do próprio Odisseu a viver sua odisséia de 18 anos no único dia 16 de junho de 1904, e representa a ciência. Os três últimos capítulos têm como marca o M de Molly Bloom, onde encontraremos o último deles composto com 8 frases, sem nenhuma vírgula e um único ponto, distribuídas ao longo de 42 páginas. Representa a mãe-terra. Estou de acordo. Contudo, para mim, insiste uma frase do Fausto, de Goethe: "Nicht Kunst und Wissenschaft allein, Geduld will bei dem Werke sein." (Faust I). Se o filho e o pai representam a arte e a ciência, Molly por certo há de representar também a Geduld, a paciência.
E é aqui que nos defrontamos com o monólogo que servirá de base a peça Penélope Bloom.É o capítulo 18.
Chama-se Penélope. Uma homenagem ao capítulo XXIII de A Odisséia. Seu tema: o reencontro.
Depois de 18-20 anos, Odisseu voltara vencendo todos os outros pretendentes. Disfarçado de mendigo, Penélope não conseguia reconhece-lo. Convenceu-a um segredo de alcova – o tálamo construído sobre o tronco de uma oliveira de folhas alongadas [XXIII:190-91].
A metáfora de Homero é irretocável: é no inamovível tálamo que se sabe quem é quem.
É sobre esta personagem, Penélope, citada sempre como exemplo da esposa fiel, que Joyce irá construir a figura parodística da mal dita infiel Molly Bloom.
Conheçamos de Molly o que se pode conhecer. Veremos que não é muito. Seu monólogo não tem a mesma consistência do de Stephen Dedalus, um sujeito que veio d’a lus – permitam que o diga luz assim, com ‘s’ – inversamente para a sonora ‘ded’ (death), para a morte. Ela faz um balanço de sua vida, recorda, mas não se analisa. Enquanto Stephen se compara com outros buscando saber quem é, Molly, ao comparar-se com outras, fica restrita a um primário e alienante nível de identificação. Quem mais parece falar, é seu corpo.
Antes de entrarmos no monólogo propriamente dito, lembremos que de sua mãe, Lunita Laredo, ela não sabe nada (p. 773), ou morreu muito cedo, ou então desertou. Casou-se com Leopold Bloom, um peripatético vendedor de anúncios para jornal, com quem teve uma filha, Milly, e um filho natimorto – Rudy; a partir dessa perda seu marido tornou-se praticamente impotente. Molly, por sua vez, trabalha como cantora em um bar, o Palace, e é amante de seu agente teatral, Blazes Boylan. Como não é difícil de perceber, Molly está sempre às voltas com a falta, - para citar Churchil – de fracasso em fracasso, mas sempre com entusiasmo. Mas é verdade que a frase de Antonio Maria e Fernando Lobo em Ninguém me ama, poderia estar também na boca de Molly, que então diria: - Vim pela noite tão longa, de fracasso em fracasso.Vamos então ao monólogo.
Não é o mais difícil de ler. Se não tem pontuação, tem ritmo, o que facilita em muito a leitura. E também não tem tantas línguas, embora grande parte da gíria aí utilizada tenha que ver com o llanito. Pois lhes conto: Molly é originária de Gibraltar, uma península do território espanhol cedido ao Reino Unido pelo tratado de Utrech, em 1713. Aí, além do inglês, sua língua oficial, fala-se também o espanhol e o llanito, formado pelo inglês e o espanhol, porém com uma influência do árabe, do genovês, do italiano, do ladino, do maltês e do hebraico, mas não é nada difícil, tudo está dito com o mais conhecido de cada língua. Mas aqui, o que me chama atenção é o que o llanito tem em comum com este projeto Penélope Blum: outra vez a confluência do inglês com o espanhol, ainda que aqui o inglês esteja representado pelo português, o que certamente não será sem conseqüências.
Eu lhes dizia que o monólogo de Molly Bloom constituía-se em uma declaração de amor. Pois vejamos.
O cenário é uma cama e o tempo da cena o dia seguinte, as primeiras horas da madrugada do dia seguinte ao 16 de junho de 1904. O quê quer dizer isto? Que o que aí se descreve não tem lugar no dia [a dia]?
Molly Bloom é uma mulher infiel, uma paródia da fida Penélope, diz-se. Pois então. Uma das origens do deus Pã, uma das figuras mais populares de todos os tempos, é atribuída aos amores de Penélope com Hermes. Vejam só! E outra ainda, atribui sua origem aos amores de Penélope com todos os seus pretendentes, daí o sentido de ‘todo’ atribuído ao deus. De modo que a fidelidade de Penélope não é assim tão indiscutível. E o adultério de Marion?
Estamos lembrados que a cama é o lugar da verdade. E aí está Marion Bloom. Antonio Houaiss chama este monólogo de “solissômnio” – uma palavra que ele não incluiu nem no seu dicionário! – quem sabe para diferenciá-lo do monólogo de Stephen Dedalus. Ela está em um estado crepuscular, entre o sono e a vigília, entre o sono e o sonho. Seria uma maneira de interpretar a ausência de pontuação, uma forma de representar a atemporalidade onírica.
Ela começa surpresa com a mudança do marido. Ele, que sempre a servira, viera para a cama encomendando para seu desjejum um café acompanhado de dois ovos. É o seu primeiro sim! Quando se sente desejada, é dessas mulheres que só dizem sim. Um carvoeiro? – Sim. Um bispo? – Sim. O padre Corrigan a quis? – Sim. Bartell dArcy quer beijá-la depois de ter cantado a Ave Maria, de Gounod? – Sim. Harold a persegue pela chuva até ela dizer sim? – Oh! Maria Santíssima, sim! E Gardner, circuncidado ou não? – Sim. Henri Doyle, pedindo com 8 papoulas, no dia oito? Não beija tão bem como Gardner, mas sim. Na segunda-feira, sim. E o velho Goodwin, de rosto gelado? – Sim. Val Dillon, grande e selvagem? – Sim. O velho Larry, por uma garrafa de clarete que ninguém mais queria? – Sim. Alguém mais? Quem sabe uma banana? – Isso não, pois teme pudesse quebrar e ficar perdida em algum lugar lá dentro (789). No mais, todos páginas viradas no seu folhetim.
Com Boylan era diferente. Ele notava a forma de seu pé mesmo na presença de seu marido, o Poldy, querido! Uma cena que parecia excitá-lo. Quando se diz que dois é bom, três é demais, usa-se uma fórmula que não serve para todos os casos. Boylan, o terceiro, bem pode ser condição da felicidade conjugal. E então Molly lembra do dia em que foi pedida em casamento. Desde esse dia, ela só quer dizer sim. Em todas as perguntas, repete-se sempre esta que representou para ela a máxima expressão do desejo de um pelo outro, a máxima expressão do desejo de Leopold por Marion, a máxima expressão do desejo do homem pela mulher.
Antes, contudo umas notas para contextualizar o assunto. Estamos a falar de um romance, mas não de um romance qualquer, nem sequer de um entre outros maravilhosos romances. Estamos falando, senão do último romance, daquele que fecundou todos os que vieram depois: Ulisses, de James Joyce.
Escrito entre 1914 e 1922, desenvolve-se em torno a três personagens o quais impregnam com seu selo às três partes do romance: Stephen Dedalus, Poldy e Molly, os dois últimos, respectivamente, hipocorísticos de Leopold Paula Bloom e Marion Bloom.
Os que o consideraram o cume de todos os romances, chegaram a esta consideração devido a seu caráter de paródia de A Odisséia, de Homero. O substrato para tal estava contido em uma frase atribuída a Kierkegaard: toda fase histórica termina com a paródia de si própria. Era o que tinha acontecido com o Don Quixote em relação aos romances de cavalaria.
Ulisses, dizem, nasceu com um estigma: o de difícil – ou mesmo impossível – leitura. Pode ser! Mas não se pode deixar de lembrar que as edições das duas traduções ao português estão esgotadas. E a segunda mal tem dois anos.
As dificuldades parecem dever-se à duas vertentes: de um lado um certo desconhecimento da intimidade do mito grego e, de outro, o fato de utilizar um inglês impregnado de dialeto irlandês e também de outras ilhas britânicas, do slang americano, de dialetos não expressos literariamente, além de citações e alusões veladas, da Bíblia e dos escolásticos, de obras escritas em grego, latim, francês, italiano, hebraico, alemão, quando utiliza muitas vezes palavras no idioma original, sem a menor cerimônia.
A relação com o clássico de Homero tem sido estabelecida assim: Os três primeiros capítulos da parte S, em que traz a cena o personagem de O retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus, compreende-se como uma referência ao filho de Odisseu, Telêmaco, e representa a arte. Os doze capítulos seguintes levam a marca de Leopold Bloom; uma paródia do próprio Odisseu a viver sua odisséia de 18 anos no único dia 16 de junho de 1904, e representa a ciência. Os três últimos capítulos têm como marca o M de Molly Bloom, onde encontraremos o último deles composto com 8 frases, sem nenhuma vírgula e um único ponto, distribuídas ao longo de 42 páginas. Representa a mãe-terra. Estou de acordo. Contudo, para mim, insiste uma frase do Fausto, de Goethe: "Nicht Kunst und Wissenschaft allein, Geduld will bei dem Werke sein." (Faust I). Se o filho e o pai representam a arte e a ciência, Molly por certo há de representar também a Geduld, a paciência.
E é aqui que nos defrontamos com o monólogo que servirá de base a peça Penélope Bloom.É o capítulo 18.
Chama-se Penélope. Uma homenagem ao capítulo XXIII de A Odisséia. Seu tema: o reencontro.
Depois de 18-20 anos, Odisseu voltara vencendo todos os outros pretendentes. Disfarçado de mendigo, Penélope não conseguia reconhece-lo. Convenceu-a um segredo de alcova – o tálamo construído sobre o tronco de uma oliveira de folhas alongadas [XXIII:190-91].
A metáfora de Homero é irretocável: é no inamovível tálamo que se sabe quem é quem.
É sobre esta personagem, Penélope, citada sempre como exemplo da esposa fiel, que Joyce irá construir a figura parodística da mal dita infiel Molly Bloom.
Conheçamos de Molly o que se pode conhecer. Veremos que não é muito. Seu monólogo não tem a mesma consistência do de Stephen Dedalus, um sujeito que veio d’a lus – permitam que o diga luz assim, com ‘s’ – inversamente para a sonora ‘ded’ (death), para a morte. Ela faz um balanço de sua vida, recorda, mas não se analisa. Enquanto Stephen se compara com outros buscando saber quem é, Molly, ao comparar-se com outras, fica restrita a um primário e alienante nível de identificação. Quem mais parece falar, é seu corpo.
Antes de entrarmos no monólogo propriamente dito, lembremos que de sua mãe, Lunita Laredo, ela não sabe nada (p. 773), ou morreu muito cedo, ou então desertou. Casou-se com Leopold Bloom, um peripatético vendedor de anúncios para jornal, com quem teve uma filha, Milly, e um filho natimorto – Rudy; a partir dessa perda seu marido tornou-se praticamente impotente. Molly, por sua vez, trabalha como cantora em um bar, o Palace, e é amante de seu agente teatral, Blazes Boylan. Como não é difícil de perceber, Molly está sempre às voltas com a falta, - para citar Churchil – de fracasso em fracasso, mas sempre com entusiasmo. Mas é verdade que a frase de Antonio Maria e Fernando Lobo em Ninguém me ama, poderia estar também na boca de Molly, que então diria: - Vim pela noite tão longa, de fracasso em fracasso.Vamos então ao monólogo.
Não é o mais difícil de ler. Se não tem pontuação, tem ritmo, o que facilita em muito a leitura. E também não tem tantas línguas, embora grande parte da gíria aí utilizada tenha que ver com o llanito. Pois lhes conto: Molly é originária de Gibraltar, uma península do território espanhol cedido ao Reino Unido pelo tratado de Utrech, em 1713. Aí, além do inglês, sua língua oficial, fala-se também o espanhol e o llanito, formado pelo inglês e o espanhol, porém com uma influência do árabe, do genovês, do italiano, do ladino, do maltês e do hebraico, mas não é nada difícil, tudo está dito com o mais conhecido de cada língua. Mas aqui, o que me chama atenção é o que o llanito tem em comum com este projeto Penélope Blum: outra vez a confluência do inglês com o espanhol, ainda que aqui o inglês esteja representado pelo português, o que certamente não será sem conseqüências.
Eu lhes dizia que o monólogo de Molly Bloom constituía-se em uma declaração de amor. Pois vejamos.
O cenário é uma cama e o tempo da cena o dia seguinte, as primeiras horas da madrugada do dia seguinte ao 16 de junho de 1904. O quê quer dizer isto? Que o que aí se descreve não tem lugar no dia [a dia]?
Molly Bloom é uma mulher infiel, uma paródia da fida Penélope, diz-se. Pois então. Uma das origens do deus Pã, uma das figuras mais populares de todos os tempos, é atribuída aos amores de Penélope com Hermes. Vejam só! E outra ainda, atribui sua origem aos amores de Penélope com todos os seus pretendentes, daí o sentido de ‘todo’ atribuído ao deus. De modo que a fidelidade de Penélope não é assim tão indiscutível. E o adultério de Marion?
Estamos lembrados que a cama é o lugar da verdade. E aí está Marion Bloom. Antonio Houaiss chama este monólogo de “solissômnio” – uma palavra que ele não incluiu nem no seu dicionário! – quem sabe para diferenciá-lo do monólogo de Stephen Dedalus. Ela está em um estado crepuscular, entre o sono e a vigília, entre o sono e o sonho. Seria uma maneira de interpretar a ausência de pontuação, uma forma de representar a atemporalidade onírica.
Ela começa surpresa com a mudança do marido. Ele, que sempre a servira, viera para a cama encomendando para seu desjejum um café acompanhado de dois ovos. É o seu primeiro sim! Quando se sente desejada, é dessas mulheres que só dizem sim. Um carvoeiro? – Sim. Um bispo? – Sim. O padre Corrigan a quis? – Sim. Bartell dArcy quer beijá-la depois de ter cantado a Ave Maria, de Gounod? – Sim. Harold a persegue pela chuva até ela dizer sim? – Oh! Maria Santíssima, sim! E Gardner, circuncidado ou não? – Sim. Henri Doyle, pedindo com 8 papoulas, no dia oito? Não beija tão bem como Gardner, mas sim. Na segunda-feira, sim. E o velho Goodwin, de rosto gelado? – Sim. Val Dillon, grande e selvagem? – Sim. O velho Larry, por uma garrafa de clarete que ninguém mais queria? – Sim. Alguém mais? Quem sabe uma banana? – Isso não, pois teme pudesse quebrar e ficar perdida em algum lugar lá dentro (789). No mais, todos páginas viradas no seu folhetim.
Com Boylan era diferente. Ele notava a forma de seu pé mesmo na presença de seu marido, o Poldy, querido! Uma cena que parecia excitá-lo. Quando se diz que dois é bom, três é demais, usa-se uma fórmula que não serve para todos os casos. Boylan, o terceiro, bem pode ser condição da felicidade conjugal. E então Molly lembra do dia em que foi pedida em casamento. Desde esse dia, ela só quer dizer sim. Em todas as perguntas, repete-se sempre esta que representou para ela a máxima expressão do desejo de um pelo outro, a máxima expressão do desejo de Leopold por Marion, a máxima expressão do desejo do homem pela mulher.
Depois de ter visto a peça, poderemos dizer com S. João:
- E o Verbo se fez carne.
[João, 1:14.]
Luiz-Olyntho Telles da Silva
1. Mesa na Livraria Cultura, em Porto Alegre, na companhia de Gerardo Bejanrano, Maria Falkenbach e Rubia Abs, respectivamente Diretor e Atriz da peça Penélope Bloom e a Advogada da ong Themis.
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