terça-feira, 22 de novembro de 2016

Entrevista completa para Leon Sanguiné - Diário Popular

Para a dança e o teatro, quais os maiores projuízos com a ausência de um teatro público? Quais os principais benefícios para uma cidade que tem um teatro público funcionando?


O caso é muito sério. A pergunta é difícil, porque parece separar a dança e o teatro de todo o contexto em que essas artes existem. Não consigo ver prejuízos específicos para a dança e o teatro, o prejuízo é para a nossa humanidade. Vou tentar explicar:

Já disse em algum momento, e digo porque sou parte de um coletivo que entende assim, posso repetir aqui: não existe dança ou teatro sem espaço cênico. O espaço é intrínseco e definidor de qualquer obra cênica. Tanto que estudar história das artes cênicas passa por estudar a história de seus espaços físicos.

Mas aqui a questão não é o que um espaço específico produz, mas o que a ausência do espaço produz. Entendo que a arte cênica é pública, porque é na relação entre artistas e público que ela existe. Isso não é jogo de palavra, isso é: é na relação, no espaço de contato entre ação cênica e a (re)ação do público que a poesia cênica acontece. Se espaço é definidor da obra, a produção de uma arte pública implica um espaço público. Voltando ao pensamento lógico, a ausência de espaço cênico público implica diretamente na ausência de arte cênica.

Esse parágrafo não mandei pra não tirar o foco da questão: A ausência do Theatro 7 de Abril: Se há ausência de teatro público, busca-se outros espaços para torna-los cênicos e públicos. Talvez a ausência de teatros públicos seja uma das condições de onde emerge a produção de obras cênicas nos ditos espaços alternativos. Isso poderia ser uma potência! O problema é quando a cidade, o poder público, não percebe essa potência e não dá suporte para a criação das infinitas possibilidades de produção de espaços cênicos públicos. Suporte quer dizer estrutura, equipamento, manutenção! Suporte quer dizer estabelecimento de espaços de criação. O problema é quando a ausência do Teatro Público significa a ausência de qualquer espaço cênico público. Isso produz ausência de criação. Isso também produz a ausência de circulação de obras.

Então, quando a ausência do Teatro Público significa a ausência de qualquer espaço cênico público, que é o caso de Pelotas, isso produz ausência de criação. Isso também produz a ausência de circulação de obras. Isso produz ausência de dança e teatro, isso produz ausência de artistas da dança e do teatro; isso produz ausência de técnicos das artes cênicas; isso produz ausência de produtores culturais; isso produz ausência de público. Isso produz a negação do acesso à arte, direito de todos. 

Este parágrafo seguinte é um desabafo, mas tão sério quanto todo o pensamento anterior: Ausência de teatro público produz ausência de pensamento cênico, de pensamento espacial e de conhecimento das possibilidades do corpo – do corpo em relação –, que contribuem intensamente com a construção de uma educação integral, “humanizante” e crítica. A ausência do teatro público contribui com o pensamento que entende que arte não é fundamental para a educação. Portanto, a ausência do Teatro Público produz burrice (burrice aqui no sentido do artigo “Parabéns, atingimos a burrice máxima”, da Eliane Brum; burrice no sentido de impossibilidade de se colocar em relação, de impossibilidade de escutar, de impossibilidade de diálogo, de permitir-se colocar-se em risco e ampliar seu mundo). E a burrice é irmã do fascismo.

Alguns exemplos pontuais, pessoais:
Nesses últimos anos, em Pelotas, diversas vezes fui contatada por grupos de teatro e dança com projetos de circulação, com interesse de apresentar o trabalho em Pelotas. Projetos financiados por editais públicos nacionais e do estado, que só dependiam de um teatro público que garantisse a infraestrutura básica necessária (caixa cênica, som, luz, plateia). Pelotas não assistiu esses espetáculos. Completa ausência.
Em 2012, o Tatá, grupo que coordeno em Pelotas, tinha verba para fazer apresentações em teatro, o objetivo era qualificar o trabalho do grupo, desenvolver desenho de luz e som e a experiência com a caixa cênica. Fizemos apresentação no Teatro São Pedro e no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Não fizemos em Pelotas. Ausência. Poderíamos ter feito temporada em Pelotas, poderíamos ter contribuído com a formação de público em dança contemporânea... poderíamos. Ausência.

São realidades de fato muito distintas, mas que comparativo podes fazer entre circuito e equipamentos culturais em Pelotas e na Inglaterra atualmente?


Aqui na Inglaterra minha relação com os equipamentos culturais é apenas como público. Meu pouco tempo aqui e a minha prioridade – pesquisar e escrever minha tese sobre dança na escola – não me permitem fazer uma verdadeira análise sobre as condições dos equipamentos culturais e circuitos, mas posso falar de algumas percepções. E acredito que posso falar porque não vivo em Londres (porque aí não há comparação) vivo em Bath, uma cidade menor que Pelotas.

A primeira percepção é que há espaços diferentes para os diferentes circuitos (e há espaço): Há equipamentos culturais para o circuito comercial, para as companhias mantidas pelo Estado (Arts Council England), para artistas e companhias independentes, para os trabalhos universitários e para a arte amadora. Há equipamento e, portanto, há esses diferentes circuitos. Tenho sido público de todos esses circuitos e uma coisa que é bem evidente (a segunda constatação): o que garante a circulação profissional (seja estatal ou independente) é o dinheiro público; mesmo os espetáculos comerciais têm alguma verba pública. Nos créditos de todos os espetáculos que assisti está lá: “Supported using public funding by Arts Council England”.

Aqui em Bath o principal teatro é o Theatre Royal Bath, onde se apresentam as produções comerciais e consagradas. Na cidade existem duas universidades e as duas têm teatro, com programação durante todo o ano. Tenho assistido os trabalhos dos grupos independentes nos teatros dessas universidades. Os teatros das universidades não são grandes, mas são bem equipados. Percebo que o que garante a circulação dos “independentes” são os financiamentos de projetos de criação e circulação. O ingresso é barato e nem sempre a plateia (mesmo que pequena) está cheia – não é só no Brasil que o mais experimental e menos conhecido tem pouco público. Vi coisas lindas aqui, com pouquíssimo público. Com certeza não era o valor do ingresso que estava sustentando o trabalho daqueles artistas – ótimos artistas -, mas a verba pública.

Há uma cultura do trabalho voluntário, da caridade e de grupos comunitários aqui, que viabiliza o circuito amador. Existem espaços e eventos amadores, organizados pela comunidade. Existem festivais e eventos escolares, organizados por entidades de educação e formação. Toda escola tem um espaço teatral.

Sem dúvida, uma grande diferença entre a Inglaterra e o Brasil é o investimento público em arte

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