San Luis de Santo Domingo, 18 de janeiro de 08
Estou vivendo agora uma outra Costa Rica. Assim como tantos eus dentro de mim mesma, vários países neste aqui tão pequeno (o Rio Grande do Sul é maior que a Costa Rica e El Salvador juntos). E dentro de cada um desses, outras possibilidades para o que cada eu quer inventar. O fato de estar numa casa com pátio grande e lareira me faz retornar muito à infância, aos tempos de Ijuí. Talvez o silêncio ajude. E o som dos animais: muito passarinho, cantos diferentes em horários diferentes, e os galos na sua rotina de nos acordar. Mas também tem animais fora de sua natureza: porcos que gritam de dentro de suas cocheiras quando homens vêm alimentá-los ou quando meninos vêm fazer arte, tudo isso faz parte da minha paisagem. E também cachorros domesticados e dependentes. Não há mais natureza em nós, só nos resta admirá-la ou assombramirá-la. Aqui me assustam os insetos que se auto-consomem. Fora os mosquitos há de tudo. E se, depois de um grito agudo, vários espasmos de nojo, mas com uma determinação espantosa, que me faz transcender meu instinto feminino, consigo matar uma barata, e a deixo ali, porque daí é demais ter que colocar aquela coisa gosmenta e achatada no lixo, em seguida não há mais barata, talvez uma pata, uma antena ou uma asa, as queridas formigas dão contado recado. Tudo isso mais o mundo das palavras têm me possibilitado sonhar muito. Agora, por exemplo, o Leandro foi dar uma entrevista em uma rádio e posso ficar aqui no silêncio e nas palavras. Ah, sim, porque quando ele está chegam com ele muitos sons, que muitas vezes desviam a cadeia das palavras e atrapalham a materialização das sensações desconhecidas e inexplicáveis que fazem o diálogo entre os sonhos e essa totalidade que vivo aqui. Se aqui consigo ficar só e em mim, nos meus sonhos há super população. Nesta noite foi demais, tanta gente e festa e aula e prova e conversa, família, amigos, colegas, todos de antes e de mais antes ainda. Mas quero contar é o sonho de ontem. Mas antes quero repetir uma frase do livro infantil do Donaldo... talvez o fato de eu estar lendo livro para crianças – ontem também li um livro de poesias escrito por crianças com câncer, mas isso é outra história que conto depois - contribui para esses meus retornos ao passado... O “Finnício Rioven”, do Donaldo, é uma transcriação de Joyce para crianças, ou pra qualquer um que gosta de palavras, estou achando uma delícia e estou louca pra ler com a Joana. A tal frase é: “Idéias saem de uma língua, dão um giro por outras línguas e voltam muito mais ricas”. Acho que é muito isso que vivo hoje, transcriando uma obra Irlandesa na Costa Rica.
Então, o sonho de ontem:
De repente, com muita força, assustadoramente, chegou quebrando tudo. Nuvens amarelas quebravam-se no céu. Da cor e com a mesma força do Rio Sucio. Como algo sobrenatural que vinha arrastando tudo, uma correnteza de nuvens amarelas que vinham ocupando e estilhaçando o céu. Sons de estilhaços e terror. Todos fugíamos corríamos sem onde esconder-se porque os vidros explodiam com o vento que a correnteza de nuvens produzia. Até que alguém disse que devíamos nos abrigar em lojas. Entrei na primeira e me escondi com mais uma pessoa e o vendedor atrás do balcão de madeira. A vitrine do balcão explodiu, se estilhaçou. E as nuvens passaram e tudo se acalmou. Mas algo havia acontecido. Ninguém sabia o que era. A sensação e a visão do céu amarelo que se movia e se quebrava ficou. Ficou no ar, ficou... ficou em todos. E uma sensação de que algo havia mudado... a sensação no ar... a sensação em todos... de que algo havia mudado... Mas ninguém sabia explicar, era pura sensação. Tudo estava diferente, mas tudo era igual. E não eram os vidros quebrados. As pessoas foram pra rua. Sentadas em frente de suas casas, nas pracinhas, na grama, se olhavam, conversavam, e não entendiam o que estava diferente. Passei dando macarrão pros cachorros que tinham fome e as pessoas, sentadas em frente de suas casas e nas pracinhas e na grama, diziam que os cachorros não comiam desde que o céu ficou amarelo e se quebrou. E então os cachorros comeram, talvez não tivessem comido porque ninguém lembrou-se de dar comida a eles, tão preocupadas e ocupadas que estavam em entender o que havia mudado, compreender aquela sensação. Mas era necessário arrumar a bagunça e carregar de volta pro escritório do meu pai as cadeiras que tinham voado pelas janelas estilhaçadas e que foram arrastadas pelo vento e que também quebraram vidros. E me pediram pra que eu recolhesse as cadeiras que estavam pela rua, talvez perdidas. E fui. E encontrei uma cadeira. E quando cheguei com esta cadeira de volta no escritório estremeci com o que vi. Era assustadora a compreensão do que havia mudado. Tudo ficou esclarecido, entendi aquela sensação inexplicável que todos compartilhávamos: quando cheguei no escritório, chegaram, ao mesmo tempo que eu, mais três eus, cada uma carregando um pedaço de cadeira. E essas quatro eus nos olhamos e compreendemos e eu fui correndo contar e explicar a todos o que havia acontecido e qual era aquela sensação que ninguém conhecia: quando o céu se partiu, quebrou-se, ele também nos despedaçou. Passamos a ser vários estilhaços de nós mesmos. Cada um se dividiu em vários eus, como se tivéssemos quebrado, mas cada pedaço de nós era autônomo e continha a sensação do todo, tanto que não percebíamos nem enxergávamos que estávamos divididos, partidos repartidos. Não era como o “Visconde Partido ao Meio” porque não havia dicotomia nem corte físico. Era uma divisão no ser. Contei isso para algumas pessoas e sim, todos entendiam que ninguém sabia explicar era a sensação disso: havíamos sido quebrados, vivíamos com nossos pedaços separados, os pedaços não se encontravam e estávamos vivendo simultaneamente através de diferentes eus, mas cada pedaço tinha a sensação do todo e por isso sentíamos aquilo que não sabíamos explicar.
E bota sonho doido. Mas tem muito a ver com tudo o que tenho vivido e também com a peça que estamos construindo: uma personagem feita por duas atrizes, onde cada uma de nós constrói faces dela e o público vai montando a unidade, a totalidade de Molly Bloom.
E por falar na peça, ontem recebemos uma carta (decreto, sei lá o que é) assinada pelo Presidente da Costa Rica, o Prêmio Nobel da Paz (vejam só) Sr. Oscar Arias Sánchez – e pela Ministra de Cultura e Juventud -, declarando de Interesse Cultural o projeto “Penélope Bloom”. Ainda não sei exatamente o que isso significa em termos práticos e na viabilização do projeto (leia-se em termos de grana), mas é muito chique!
A casa maravilhosa na qual estamos, que tem até um estúdio em cima onde estamos ensaiando, é da Maira: uma senhora de boina, poetiza e professora aposentada, que vive na casa ao lado e que nos deu de presente pó de café e o tal livro de poesias escritas por crianças nicaragüenses com câncer. Parece triste, mas é lindo, é a construção da metáfora, a brincadeira com palavras e a materialização do pensamento daquelas crianças. Pra explicar: esse livro é fruto de uma oficina de poesias coordenada pelo poeta Ernesto Cardenal, que foi Ministro da Cultura da Nicarágua durante a revolução. Aí está: Maira foi guerrilheira e foi a coordenadora de todas as oficinas de poesia que faziam por todo o país, com crianças e com adultos. É claro que lembrei de um livro de contos sobre a revolução da Nicarágua que minha mãe nos deu quando éramos criança e no qual havia um relato que me deixou, criança, comovida-entusiasmada-encantada: a batalha que um grupo de crianças de uma aldeia (onde só haviam crianças e mulheres pois os homens estavam todos fora, na guerrilha) venceu, apenas com bombinhas e panelas que faziam sons de metralhadora.Gosto de imaginar que talvez estas crianças tenham participado dessas oficinas... o mundo dando voltas. E minha colega Vicky, o lado outro da Molly, naquela época também viveu quatro anos na Nicarágua trabalhando com as oficinas de arte. Com este povo que acabei me metendo. Muito familiar.
Agora a fome começou a apertar. Então, o jeito é fazer comida. Aqui a comida é bem mais cara que no Brasil.
Todos merecem um tempo assim com espaços vazios para todas essas imagens surgirem. O relógio determina nossa imaginação e nosso pensamento. Acordar com o sol e dormir com as estrelas provoca outro metabolismo de imagens. Aí a gente pode criar o tempo, a cadência, o ritmo, as durações, aqui no texto, ou na canção, ou na ação cênica.
A Costa Rica é linda, tem muita mata, mas também é simples, não tem calçada, é assustada, tem muitas grades, tem gente maravilhosa e gente grossa, tem um rio amarelo que se encontra com um rio verde, tem um mercado público que vende peixe, ervas, frutas, flores e gallopinto (mexido de arroz com feijão) e casado (prato feito), tem um teatro nacional chiquérrimo da época dos senhores de café, tem um café delicioso, tem plantação de café em todo canto, e tem muito mais coisa que eu ainda não conheci, mas a Costa Rica é isso tudo o que estou sentindo também.
Estou vivendo agora uma outra Costa Rica. Assim como tantos eus dentro de mim mesma, vários países neste aqui tão pequeno (o Rio Grande do Sul é maior que a Costa Rica e El Salvador juntos). E dentro de cada um desses, outras possibilidades para o que cada eu quer inventar. O fato de estar numa casa com pátio grande e lareira me faz retornar muito à infância, aos tempos de Ijuí. Talvez o silêncio ajude. E o som dos animais: muito passarinho, cantos diferentes em horários diferentes, e os galos na sua rotina de nos acordar. Mas também tem animais fora de sua natureza: porcos que gritam de dentro de suas cocheiras quando homens vêm alimentá-los ou quando meninos vêm fazer arte, tudo isso faz parte da minha paisagem. E também cachorros domesticados e dependentes. Não há mais natureza em nós, só nos resta admirá-la ou assombramirá-la. Aqui me assustam os insetos que se auto-consomem. Fora os mosquitos há de tudo. E se, depois de um grito agudo, vários espasmos de nojo, mas com uma determinação espantosa, que me faz transcender meu instinto feminino, consigo matar uma barata, e a deixo ali, porque daí é demais ter que colocar aquela coisa gosmenta e achatada no lixo, em seguida não há mais barata, talvez uma pata, uma antena ou uma asa, as queridas formigas dão contado recado. Tudo isso mais o mundo das palavras têm me possibilitado sonhar muito. Agora, por exemplo, o Leandro foi dar uma entrevista em uma rádio e posso ficar aqui no silêncio e nas palavras. Ah, sim, porque quando ele está chegam com ele muitos sons, que muitas vezes desviam a cadeia das palavras e atrapalham a materialização das sensações desconhecidas e inexplicáveis que fazem o diálogo entre os sonhos e essa totalidade que vivo aqui. Se aqui consigo ficar só e em mim, nos meus sonhos há super população. Nesta noite foi demais, tanta gente e festa e aula e prova e conversa, família, amigos, colegas, todos de antes e de mais antes ainda. Mas quero contar é o sonho de ontem. Mas antes quero repetir uma frase do livro infantil do Donaldo... talvez o fato de eu estar lendo livro para crianças – ontem também li um livro de poesias escrito por crianças com câncer, mas isso é outra história que conto depois - contribui para esses meus retornos ao passado... O “Finnício Rioven”, do Donaldo, é uma transcriação de Joyce para crianças, ou pra qualquer um que gosta de palavras, estou achando uma delícia e estou louca pra ler com a Joana. A tal frase é: “Idéias saem de uma língua, dão um giro por outras línguas e voltam muito mais ricas”. Acho que é muito isso que vivo hoje, transcriando uma obra Irlandesa na Costa Rica.
Então, o sonho de ontem:
De repente, com muita força, assustadoramente, chegou quebrando tudo. Nuvens amarelas quebravam-se no céu. Da cor e com a mesma força do Rio Sucio. Como algo sobrenatural que vinha arrastando tudo, uma correnteza de nuvens amarelas que vinham ocupando e estilhaçando o céu. Sons de estilhaços e terror. Todos fugíamos corríamos sem onde esconder-se porque os vidros explodiam com o vento que a correnteza de nuvens produzia. Até que alguém disse que devíamos nos abrigar em lojas. Entrei na primeira e me escondi com mais uma pessoa e o vendedor atrás do balcão de madeira. A vitrine do balcão explodiu, se estilhaçou. E as nuvens passaram e tudo se acalmou. Mas algo havia acontecido. Ninguém sabia o que era. A sensação e a visão do céu amarelo que se movia e se quebrava ficou. Ficou no ar, ficou... ficou em todos. E uma sensação de que algo havia mudado... a sensação no ar... a sensação em todos... de que algo havia mudado... Mas ninguém sabia explicar, era pura sensação. Tudo estava diferente, mas tudo era igual. E não eram os vidros quebrados. As pessoas foram pra rua. Sentadas em frente de suas casas, nas pracinhas, na grama, se olhavam, conversavam, e não entendiam o que estava diferente. Passei dando macarrão pros cachorros que tinham fome e as pessoas, sentadas em frente de suas casas e nas pracinhas e na grama, diziam que os cachorros não comiam desde que o céu ficou amarelo e se quebrou. E então os cachorros comeram, talvez não tivessem comido porque ninguém lembrou-se de dar comida a eles, tão preocupadas e ocupadas que estavam em entender o que havia mudado, compreender aquela sensação. Mas era necessário arrumar a bagunça e carregar de volta pro escritório do meu pai as cadeiras que tinham voado pelas janelas estilhaçadas e que foram arrastadas pelo vento e que também quebraram vidros. E me pediram pra que eu recolhesse as cadeiras que estavam pela rua, talvez perdidas. E fui. E encontrei uma cadeira. E quando cheguei com esta cadeira de volta no escritório estremeci com o que vi. Era assustadora a compreensão do que havia mudado. Tudo ficou esclarecido, entendi aquela sensação inexplicável que todos compartilhávamos: quando cheguei no escritório, chegaram, ao mesmo tempo que eu, mais três eus, cada uma carregando um pedaço de cadeira. E essas quatro eus nos olhamos e compreendemos e eu fui correndo contar e explicar a todos o que havia acontecido e qual era aquela sensação que ninguém conhecia: quando o céu se partiu, quebrou-se, ele também nos despedaçou. Passamos a ser vários estilhaços de nós mesmos. Cada um se dividiu em vários eus, como se tivéssemos quebrado, mas cada pedaço de nós era autônomo e continha a sensação do todo, tanto que não percebíamos nem enxergávamos que estávamos divididos, partidos repartidos. Não era como o “Visconde Partido ao Meio” porque não havia dicotomia nem corte físico. Era uma divisão no ser. Contei isso para algumas pessoas e sim, todos entendiam que ninguém sabia explicar era a sensação disso: havíamos sido quebrados, vivíamos com nossos pedaços separados, os pedaços não se encontravam e estávamos vivendo simultaneamente através de diferentes eus, mas cada pedaço tinha a sensação do todo e por isso sentíamos aquilo que não sabíamos explicar.
E bota sonho doido. Mas tem muito a ver com tudo o que tenho vivido e também com a peça que estamos construindo: uma personagem feita por duas atrizes, onde cada uma de nós constrói faces dela e o público vai montando a unidade, a totalidade de Molly Bloom.
E por falar na peça, ontem recebemos uma carta (decreto, sei lá o que é) assinada pelo Presidente da Costa Rica, o Prêmio Nobel da Paz (vejam só) Sr. Oscar Arias Sánchez – e pela Ministra de Cultura e Juventud -, declarando de Interesse Cultural o projeto “Penélope Bloom”. Ainda não sei exatamente o que isso significa em termos práticos e na viabilização do projeto (leia-se em termos de grana), mas é muito chique!
A casa maravilhosa na qual estamos, que tem até um estúdio em cima onde estamos ensaiando, é da Maira: uma senhora de boina, poetiza e professora aposentada, que vive na casa ao lado e que nos deu de presente pó de café e o tal livro de poesias escritas por crianças nicaragüenses com câncer. Parece triste, mas é lindo, é a construção da metáfora, a brincadeira com palavras e a materialização do pensamento daquelas crianças. Pra explicar: esse livro é fruto de uma oficina de poesias coordenada pelo poeta Ernesto Cardenal, que foi Ministro da Cultura da Nicarágua durante a revolução. Aí está: Maira foi guerrilheira e foi a coordenadora de todas as oficinas de poesia que faziam por todo o país, com crianças e com adultos. É claro que lembrei de um livro de contos sobre a revolução da Nicarágua que minha mãe nos deu quando éramos criança e no qual havia um relato que me deixou, criança, comovida-entusiasmada-encantada: a batalha que um grupo de crianças de uma aldeia (onde só haviam crianças e mulheres pois os homens estavam todos fora, na guerrilha) venceu, apenas com bombinhas e panelas que faziam sons de metralhadora.Gosto de imaginar que talvez estas crianças tenham participado dessas oficinas... o mundo dando voltas. E minha colega Vicky, o lado outro da Molly, naquela época também viveu quatro anos na Nicarágua trabalhando com as oficinas de arte. Com este povo que acabei me metendo. Muito familiar.
Agora a fome começou a apertar. Então, o jeito é fazer comida. Aqui a comida é bem mais cara que no Brasil.
Todos merecem um tempo assim com espaços vazios para todas essas imagens surgirem. O relógio determina nossa imaginação e nosso pensamento. Acordar com o sol e dormir com as estrelas provoca outro metabolismo de imagens. Aí a gente pode criar o tempo, a cadência, o ritmo, as durações, aqui no texto, ou na canção, ou na ação cênica.
A Costa Rica é linda, tem muita mata, mas também é simples, não tem calçada, é assustada, tem muitas grades, tem gente maravilhosa e gente grossa, tem um rio amarelo que se encontra com um rio verde, tem um mercado público que vende peixe, ervas, frutas, flores e gallopinto (mexido de arroz com feijão) e casado (prato feito), tem um teatro nacional chiquérrimo da época dos senhores de café, tem um café delicioso, tem plantação de café em todo canto, e tem muito mais coisa que eu ainda não conheci, mas a Costa Rica é isso tudo o que estou sentindo também.
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