quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Desde Costa Rica, quase Brasil

Escritos mais confessionais, desta vez. Mas, foda-se, estou num momento de me expor, mesmo. Pode ser chato.

25.02.2008
Casulo.
Já levantei, já tomei café, já lavei roupa, mas sempre volto pra cama. Sensação de vazio e cheio ao mesmo tempo. Sensação de assombro com o poder da minha pecinha de teatro. Pessoas mexidas, perguntantes, expondo-se com coragem depois da minha exposição. Meu medo de estar chegando perto do que acredito. Mistura de vida e morte. Me sinto muito mulher. Como era aquele papo com o Dôdo sobre sentimentos exprimíveis ou não, sobre o conhecimento de um (uma) que pode ser compartilhado, ou não? Qual era a conclusão? Podemos compartilhar todo nosso conhecimento, de todas essas sensações? Parece, às vezes, que não. Me sinto só. Me sinto inteira no meu corpo e com medo do não poder (ou não necessitar) compartilhar. É forte. Me disseram coisas fortes, olho no olho. Me sinto responsável pela vida. Me sinto parte dessa parte da vida que se importa com o outro. Numa dessas noites, depois da peça, fui jantar com a Helena e a Marlen. Helena, com toda sua história (sua dança, sua arte, sua fuga da ditadura do Chile, sua postura de mãe – concentrado de vida), me fez lembrar porque estou hoje aqui, nesse mundo de dança e teatro. Sempre dancei, sempre fiz teatro, desde niña, mas nunca pensava em ser bailarina ou atriz. Não tinha esse sonho... Muito estranho. Foi bem depois, já no último ano da engenharia, que num curso com o Fernando Peixoto, um curso que era de direção teatral, que eu não sei como fui parar lá não me lembro, mas um curso que era muita conversa, ele contando sobre sua história no teatro. A sua história era a história do Brasil. Foi naquele momento que decidi que era isso que eu queria. Não faço história do Brasil, até porque depois de estar na Costa Rica, descobri que o Brasil é grande demais. Mas tenho a sensação de estar fazendo a minha história e... sem modéstia... a história de bastante gente. Dá medo.

26.02.2008
Percebo, pelos abraços, que a Costa Rica entrou em mim e eu nela. Quando cheguei pela primeira vez, no ano passado, era um aperto de mão, às vezes 1 beijo e “mucho gusto”. Agora tenho recebido cada abraço apertado... No último dia da oficina que eu e o Leandro demos pra alguns alunos de teatro e dança, uma das meninas se aproximou: “deixa eu te abraçar de novo, parece que não te abracei” ... “agora sim”.
Por esses abraços, pelas conversas sinceras, pelas confissões, pelas vozes frágeis que buscam o discurso preciso, pelo vinho que se comunga, pela música que se compartilha e pela vontade que temos de estar juntos, encontro nossa identidade. Nós, latino-americanos somos assim. Vejo notícia sobre o terrorismo norte-americano (eles não chamam assim, a manchete do jornal era mais ou menos assim: “matou 5 e se suicidou porque não tomou seus medicamentos”), jovens que compram balas, matam de punhado e depois e se matam. Parece falta de sentido. Parece “tanto faz”. Tenho raiva desse tanto faz com a vida, que pra mim é tão cara. E não se parece nada com a falta de perspectiva de nossos jovens que conhecem a violência desde cedo, ou cuja única perspectiva é mais violência. Corpo carne sem poesia. Corpo que no contato com outro corpo só produz medo. Mas não é medo de ser transformado, de afectar e ser afectado, é medo de não ser. Medo de morte. Mas não de morte etapa da vida, mas morte do nada. Pois, nós, latino-americanos, sim ia falar sobre o contrário da morte e sobre como encontramos sentido e cheguei justo onde não há. Consigo sempre me contradizer. Como fica difícil construir uma tese quando estás disposto a escutar, a observar, a perceber a percepção do outro.
A tese que ia construir é de que nós, latino-americanos, construímos sentido para nossas vidas nas relações que vamos construindo uns com os outros: amigos, família. Compartilhar momentos, coisas, linguagens, cheiros, sabores, achados, dores... basta. Frase que meu pai fala tanto e que o Caetano também canta: “é só isso!”

27.02.2008
O limbo devia ser mais ou menos isso. Nem lá nem cá. Tempo espesso, sons densos e o exponencial grosso de tudo isso quando refletido no estômago. Mais que o julgamento, dar-se conta do que passou. Dar-se o tempo para absorver toda a experiência e sofrer todas as dores e êxtases.
Uma vez meu pai me perguntou se em algum momento da minha vida eu teria pensado “agora eu poderia morrer”. Pergunta difícil, buscando a minha verdade. Meu pai tem um truque que faz a gente respirar, e ser sincero: depois da resposta automática diante da saudação “Tudo dem?”, “Ele olha e pergunta: de verdade?”. Hehe. Eu já desmascarei o truque, mas faço de conta que esqueço pra que continue funcionando. Então, depois da tal pergunta sobre o morrer... respirei... e meu peito lembrou-se de momentos em que não cabia em mim, em que o tórax ficava pequeno e ele se transbordava pros membros, até quase os pés saírem do chão. Momentos a mim proporcionados pelo teatro. Momentos de extrema comunhão, nos quais eu não era uma só. Nunca perdi filho, meus contatos com a morte sempre foram no gozo.
Agora, aqui, nesse limbo ensolarado, coloco meu peito no sol, pra perder a marca do biquíni e ensolarar a alma. Quero perder a alvisse, expor minha carne negra, meu sangue índio, que me permitem, antes de julgar, admirar.
E viva o teatro e a dança! Que fazem esse corpo mexer-se e fazem todos esses sofridos idos se movimentarem, se revolucionarem. Meus músculos, coitados, sem paz, vivem essa revolução diária. Num tempo em que se fala tanto em paz, eu aqui, pregando a (re)volta em mim mesma. A guerra em si mesmo. O fim da pasmacera. O corpo cansado de pelear na busca do outro corpo encontra sossego.
Sossego: 1. sujeito só; 2. descanso da guerra de si mesmo.
Meu eu sossego quer pelo menos mais um. Sossego em dois, só em dois. Descanso pra nova luta, pra nova busca, sem paz. A paz me soa morte.
Por que em dias de sol não consigo ficar dentro? Como nossa casa tinha um pátio grande, em dias de sol se podia estudar em baixo da árvore. Se estou dentro, em dias de sol, fica aquela sensação na orelha de que estou perdendo algo. Sensação de falta. Talvez o útero da minha mãe fosse muito iluminado. Ainda é.
Telefonema da Mayra, que, com o carinho de seus errres bem pronunciados, me conta que “embora criticamos este periódico, tua peça será conhecida em toda Costa Rrrrica. Adélias, Marias, Frrrranciscas. O título é Poética do Cotidiano”. A ponta da língua como a metralhadora que não usou na sua revolução pela poesia.
Eu queria ter escrito sobre a eclipse lunar. Mas o Dionísio nos leu seu poema-canção tão forte, que fiquei com vergonha. Saiu uma foto linda na capa do periódico no dia seguinte. Alguns disseram que ela ficou vermelha. Mentira. Eu vi uma Lua marrom. Não era Flicts, era Terra. O jornal vendeu todinho nesse dia. Todos queriam guardar a Lua escondida no escuro da nossa sombra. Isso tira a gente do chão. Seres vooíferos. Com pés fincados, com medo de mais. Nessa altura, a briga por um pedaço de terra me parece irônica. Mas mata. Nossos “levantados do chão”, diz Saramago, canta Chico. Seres v(o)oláteis, matéria dispersa, que busca um chão pra condensar e produzir.

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